Ao contrário do que alguns esperavam, o aclamado Roma, do diretor mexicano Alfonso Cuarón, não levou o Oscar de melhor filme; no entanto, o longa sai mais do que vitorioso. Pela primeira vez, o filme de uma plataforma de streaming não só concorreu às principais categorias do cinema mundial, como também conquistou os prêmios de Direção, Fotografia e Filme Estrangeiro.

Conhecido pela transmissão de conteúdo pela internet – como filmes, séries e músicas – sem a necessidade de download, o serviço de streaming popularizou-se com a plataforma Netflix. Diante desse boom, houve até brincadeiras na internet que mostravam o famoso letreiro de Hollywood sendo substituído pelo da empresa de streaming.

Mas, será mesmo que a indústria do cinema está com os dias contados? Para o pesquisador e especialista em imagens, Prof. Dr. Jack Brandão, todas as transformações levam a duas reações: para os mais velhos causam “inquietação e desconfiança”; para os mais novos, “deslumbramento”. Assim, temos serviços diferentes; mas que, dificilmente, um substituirá o outro, mesmo com todo o sucesso dessas plataformas. Vivemos naquilo que o pesquisador chama de arrogância do tempo presente, ou seja, “não enxergamos com clareza que tais mudanças são naturais”.

Um dos fatores que também podem explicar o sucesso vertiginoso da Netflix é, ainda segundo o Prof. Jack Brandão, “nossa iconotropia, ou seja, nosso anseio por consumir sempre mais e mais imagens, na hora que quisermos e no lugar que desejarmos, seja pela TV, pelo notebook ou pelo celular”. Aliado a isso, ele complementa que tais plataformas nos dão a falsa sensação de que estamos no controle – falsa porque escolhemos algo que já integra uma pré-seleção feita pela plataforma.

Além dessa conveniência proporcionada pelas plataformas, o especialista em Inovação e Tecnologia e Professor da FGV, Arthur Igreja, aponta outro fator responsável pelo sucesso de Netflix: o mapeamento de consumidores.

Um dos exemplos citados por ele é a série House of Cards, que nasceu, justamente, da percepção do tipo de conteúdo que os consumidores desejavam consumir e que, no caso, era político. Essas informações foram entregues a roteiristas e diretores e, logo em seguida, surgia a série. “A Netflix conseguiu fazer algo que cinema nenhum do mundo foi capaz: mensurar o que o usuário está achando do roteiro, quando e que horas ele pausou a série e continuou a assisti-la. Isso mostra o quanto estas plataformas conseguem entender o consumidor melhor do que ninguém”.  

Outro fator que também pode ser impulsionador para o sucesso da plataforma é a ausência de publicidade. Segundo uma pesquisa da Audience Project, 57% dos assinantes da Netflix disseram que abandonariam o serviço, caso anúncios fossem introduzidos.  Para o professor da FGV, isso faz todo o sentido pois, especialmente nos tempos atuais, o que as pessoas mais desejam é poupar tempo. Portanto, segundo ele, assistir a programas sem interrupções é fundamental, ao contrário do que ocorre com a transmissão de séries e filmes televisivos, por exemplo.

Quanto a contribuição dessas plataformas para a produção audiovisual, Igreja as considera de grande relevância. “Há sete ou oito anos, não imaginávamos essa extensa quantidade de conteúdo vertical que é produzida hoje pela Netflix, por exemplo. Quando eu abro a plataforma, 60% dos conteúdos ali exibidos são originários dela. Embora seja notável essa capacidade de produzir o próprio conteúdo, é preciso ter cautela com o excesso para evitar reclamações do público de que tal conteúdo não, necessariamente, é o que ele deseja consumir”.

Novamente, destaca-se aqui a falsa sensação de escolha proporcionada pelo serviço de streaming. Para Brandão, isso fica claro quando da exibição, pela Netflix, de seu primeiro filme interativo, Bandersnatch. “Caberia ao telespectador, assim como a um deus, guiar a tomada de decisões da personagem principal, no entanto havia momentos, a partir dessas escolhas, que a plataforma não dava outra opção: ou se escolhia o que eles queriam ou se encerrava o filme.”

Já em relação ao filme Roma, alguns críticos consideraram um absurdo o fato de essa obra não ter sido produzida para os cinemas. Para Brandão, porém, trata-se de um pensamento equivocado; afinal, acabam-se subestimando tais plataformas. “O fato de Roma estar na Netflix é, a meu ver, extremamente positivo, pois seu alcance é bem maior, além disso foi uma escolha do diretor.”

Outro ponto que merece atenção é o fato de a obra ter levado o Oscar de melhor fotografia, reforçando tal competência. “Tal prêmio, por exemplo, é dado pela capacidade de a película contar uma história por meio das imagens. Nem sempre, aquilo que se consideram belas tomadas fotográficas são aquelas produzidas pelos melhores recursos cinematográficos”, diz Brandão.

Há, em Roma, imagens da dura realidade mexicana da década de 70 e de sua desigualdade social, produzidas com esmero e que remetem às próprias memórias de infância do diretor. Sem contar que o filme foi produzido em preto e branco, filmado em película que também exige um cuidado todo especial, para nossa época repleta de cor.

Igreja também considera equivocada a crítica ao fato do longa de Cuarón não ser exibido nos telões: “É claro que o cinema sempre fará lobby contra a Netflix, inclusive, algumas premiações de filmes, provenientes da plataforma, não foram reconhecidas por não pertencer à indústria tradicional, o que é um equívoco.  Afinal, quem deve escolher qual deve ser a indústria vencedora é o usuário e não a própria indústria em si. ” E para o professor da FGV, a Netflix agiu com extrema inteligência ao produzir um filme como Roma, com um diretor tremendamente renovado da indústria tradicional.

Para concluir, Brandão ressalta que, seja por meio do cinema ou pelas plataformas de streaming, aquilo que as pessoas realmente desejam é consumir imagens. “Os usuários da Netflix não se tornarão ‘inimigos’ do cinema. Muitos continuarão vendo filmes nos telões, mas como toda inovação, é preciso aprender a conviver com elas”. Já Igreja afirma que todos esses serviços acabam se complementando, pois é o usuário quem dá a palavra final e este quer ir ao cinema, quer assistir TV e também ter acesso aos serviços de streaming.

Além disso, já é possível verificar essa integração pelo anúncio ou até mesmo exibição de alguns episódios de séries, oriundas das plataformas, na TV. Então, não, Hollywood não está com os dias contados.

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Mariana Mascarenhas

Jornalista e Mestra em Ciências Humanas. Amante das artes em suas mais variadas formas: cinema, música, exposição, literatura…. Teatro então? Nem se fala! Busca estar sempre antenada com a programação teatral para conferir aquela peça que está dando o que falar: seja para divertir, emocionar ou refletir. Só conferir os textos e ficar de olho no que tá rolando por aí.

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