Psicólogos explicam se o “vilão” do filme pode ou não ser considerado uma vítima da sociedade

Na contagem regressiva para um dos maiores eventos da indústria cinematográfica, a entrega do Oscar – que acontece neste domingo, dia 9 de fevereiro – a expectativa de muitos é grande, afinal, a disputa, neste ano parece ser bem acirrada entre as produções que concorrem às principais categorias da premiação, especialmente a de Melhor Filme.

Uma das grandes apostas do público é no filme Coringa, que lidera em indicações, concorrendo em 11 categorias, incluindo Melhor Filme, Diretor (Todd Phillips), Ator (Joaquin Phoenix), Fotografia, entre outros. Considerado um dos vilões mais famosos do cinema e dos HQs, conhecido por sua risada inigualável, o Coringa se apresenta, desta vez, de uma forma nunca antes vista ao levar o público a uma viagem pela sua trajetória de vida.

Nesta produção de Todd Philipps, conhecemos o homem por trás da máscara de palhaço, o personagem Arthur Fleck, e como ele se transforma no Coringa a partir de todas as suas perturbações mentais, do seu passado sombrio, que envolvem relações conturbadas com a mãe e a forma como foi satirizado por uma sociedade perversa – vale ressaltar a maestria com que Phoenix incorpora tal transformação no papel do protagonista.

O filme acabou, inclusive, gerando polêmicas, ao dividir opiniões entre quem se compadeceu do personagem por sua vida sofrível e aqueles que disseram que nada justificaria os atos cruéis cometidos pelo protagonista, julgando que ele foi vitimizado no longa. De qualquer forma, a produção nos deixa um questionamento do grande filósofo Jean-Jacques Rousseau: “O homem nasce bom e a sociedade o corrompe”. Será que poderíamos considerar tal frase no mundo real?

De acordo com Christiane Couve de Murville, doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo – USP, enquanto crianças somos seres puros e ingênuos e, ao longo da vida, começamos a adquirir hábitos do ambiente que nos cerca e a replicar reações e comportamentos semelhantes àqueles que estão ao nosso redor e temos como referência.

A partir de então, segundo a psicóloga, a criança vai perdendo a sua autenticidade e espontaneidade ao se manifestar sob a influência de tudo o que incorporou, criando máscaras para lidar com determinadas situações. “Somos, constantemente, influenciados e estimulados a nos comportar conforme a sociedade vigente. Quando não sabemos ou não temos clareza do que acontece conosco e ao nosso redor, seguimos a vida de um modo que talvez possamos chamar de ignorante, por ignorar, não saber. Exemplo disso é aquele que não enxerga muito além do próprio umbigo”, ressalta.

Mas, de acordo com ela, a partir do momento que o indivíduo adquire maior compreensão do que se passa a sua volta, ele pode escolher como agir e tratar o próximo, o que fazer de sua vida e quem pretende ser. Por isso, “não dá para jogar a culpa nos outros e na sociedade. Ninguém é vítima, todos somos co-criadores do mundo, que encontramos a nossa volta, e da sociedade na qual estamos mergulhados, que sustentamos no dia a dia com nossas ações, intenções e nossos pensamentos”. Portanto, para Christiane, se achamos que a sociedade está corrompida, significa que há muito trabalho a fazer para que mais pessoas deixem de agir de modo inconsciente, ignorante ou egocêntrico.

O psicólogo Auréio Melo, mestre e doutor pelo Instituto de Psicologia da USP, também apresenta divergências quanto à frase de Rousseau e a considera como a premissa do diálogo do filme. No entanto, o psicólogo ressalta a relevância de pensar na produção como pura ficção. “Na vida real tudo aconteceria de forma bem diferente, pois, ao contrário do que acontece com Fleck, alguém com quadro psicótico como o personagem, que perde a assistência social, cortada pelo governo, fica sem seus remédios, além de sofrer agressões físicas e ter sérios problemas com a mãe, jamais poderia tornar-se um psicopata, e sim alguém ainda mais psicótico. Por isso, temos que pensar no Coringa como uma ilustração muito bem representada e construída, mas que, acima de tudo, se baseia numa falsa premissa”, afirma

O assunto, inclusive, rendeu críticas ao filme sobre o fato de seu personagem ser incoerente com os outros Coringas das produções do Batman por este externar emoções, ao contrário dos demais, que possuem traços psicopatas. Melo não concorda com tal análise, pois não vê incoerência entre os personagens, mas a apresentação de uma versão alternativa do Coringa que o público não conhecia. “Para mim, as únicas diferenças entre este personagem e os demais é que ele é muito melhor trabalhado e construído, além de ser apresentado como vítima da sociedade. Nos filmes do Batman, os vilões também são produtos da sociedade, eles possuem histórias de abandono, traumas, acidentes, eles são consequências de um evento, mas é no Coringa que, realmente, há uma quebra de paradigma ao colocar um vilão na condição de vítima”.

Já para Christiane, é preciso ter muita cautela ao definir alguém como psicopata, ou com qualquer outra doença ou distúrbio mental, seja um personagem ou não, pois é necessária uma série de estudos, avaliações e observações cuidadosas para a definição do diagnóstico. E, ainda assim, a psicóloga afirma que defini-lo significa atribuir um rótulo ao diagnosticado por ele ser descrito numa condição específica da qual será difícil desvencilhar-se, pois “os rótulos moldam olhares, afetam relacionamentos e o modo como o próprio paciente se enxerga. No contato social do dia a dia não temos uma visão ampla do que de fato acontece com os outros. Percebemos, apenas, uma faceta da realidade que se apresenta a nós. Porém, é lógico que devemos ficar atentos ao que sentimos e experimentamos ao lado das pessoas que encontramos”.

De acordo com dados do estudo americano The Epidemiology of Antisocial Behavior in Childhood and Adolescence (A Epidemia do Comportamento Antissocial na Infância e na Adolescência, em tradução livre), de 1991, estima-se que haja 69 milhões de psicopatas no mundo, e que as taxas do transtorno variem entre 0,5% a 3%. Especialistas, inclusive, afirmam que 1 a 3% da população são psicopatas, o que significa que, uma em cada 30 pessoas podem ser diagnosticadas com psicopatia, sendo 6 milhões de psicopatas no Brasil.

Mas é importante termos em mente que nem todo psicopata é um assassino, afinal, ele busca aquilo que lhe dá prazer e que pode ser dinheiro, status ou poder. De acordo com uma pesquisa feita em companhias americanas, até 3,9% dos executivos empresariais podem ser psicopatas, uma taxa de psicopatia quatro vezes maior do que na população em geral, o que não significa, necessariamente, que eles desejam matar os colegas, mas que usam do cargo para barbarizar.

Outro ponto levantado por Christiane é a complexidade do indivíduo e, por isso, ele não deve ser percebido a partir de um olhar maniqueísta. “Ao invés de defender quem é vilão e quem é bonzinho, é mais interessante e produtivo reparar o quanto estamos todos interconectados, pois o que fazemos afeta o vizinho e vice-versa. Observamos isso no filme, no entrelaçamento das vidas dos diferentes personagens, pois, apesar de cada um viver em sua bolha pessoal de desejos, necessidades, sonhos e projeções particulares, todos estão interligados”.

Um forte aspecto levantado no longa é a assistência oferecida pelo governo, ou, no caso, a falta dela, a pessoas com distúrbios mentais como é o caso do protagonista. Ao discorrer sobre tal problema no Brasil, Melo destaca a precariedade da saúde pública com destaque para a mental, que ele considera como uma das áreas menos privilegiadas, afetando, principalmente, a população mais pobre. “Ela não possui nenhuma referência, está fadada ao fracasso e ao abandono por parte do Estado, sem contar que há casos de pessoas com transtornos mentais, vítimas de agressividade, e de problemas com seus familiares e outras pessoas em decorrência de tais transtornos”.

Christiane defende, “o incentivo e o desenvolvimento de projetos culturais ligado à saúde e à educação, capazes de ampliar horizontes, tirar as pessoas de uma condição de inércia em torno de algum evento sofrido, abrir o leque de possibilidades capacitando-as para que possam se desenvolver, se aprimorar, se reerguer e desempenhar outras atividades”.

Para finalizar, Christiane ressalta a presença de várias pessoas mascaradas no filme e que a máscara pode estar associada ao ego, a condicionamentos e hábitos que incorporamos. “Aquele que se esconde atrás da máscara não é autêntico e acha que pode fazer qualquer coisa sem ser reconhecido e assumir qualquer responsabilidade”.

Ao que tudo indica, Coringa, realmente, tem vários fatores para brilhar na noite do Oscar. É aguardar e conferir!

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Mariana Mascarenhas

Jornalista e Mestra em Ciências Humanas. Amante das artes em suas mais variadas formas: cinema, música, exposição, literatura…. Teatro então? Nem se fala! Busca estar sempre antenada com a programação teatral para conferir aquela peça que está dando o que falar: seja para divertir, emocionar ou refletir. Só conferir os textos e ficar de olho no que tá rolando por aí.

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