Produtora, musicista e cantora, Malka tem quase 20 anos de carreira. Ela passeia por vários estilos e leva seu trabalho para lugares como festas eletrônicas, eventos de rap e funk, e orquestras. Inclusive foi a primeira travesti a tocar na Sala São Paulo.

Malka é idealizadora da gravadora Trava Bizness, selo que oferece produção e finalização musical para as travestis, homens trans e pessoas não binárias. Sobre a transfobia, a artista acredita é necessário que o debate “parta das pessoas cisgêneras heteronormativas, para podermos abordar essas questões a partir de onde existe o problema”. 

O Matraca Cultural conversou com ela sobre a visibilidade no cenário cultural de pessoas transgêneros. Confiram!

 

Matraca Cultural: Qual a importância da cultura e da representatividade nas produções culturais para o combate à LGBTQfobia?
Malka: Creio que representatividade é uma palavra perigosa. Nela contém a ideia de uma ou duas pessoas que representam um todo. Temos que lutar pela naturalização dos espaços para a comunidade LGBT, principalmente para as transvestigêneres, e ocupar os espaços em quantidade, assim como as pessoas cis. Representatividade traz uma conotação de cota e acaba gerando situações como a da Virada Cultural deste ano, quando em nosso palco disseram que era um show de travestis, sem especificar os nomes das artistas. Nosso nome, arte e vida vêm com importância e capacidade de realização. Não entendemos que somos diferentes de qualquer pessoa cisgênera ao atuar em qualquer área. Quando mudarem esse pensamento de representatividade e termos pessoas conscientes de fato, talvez veremos um mundo onde travestis em posições chave de poder seja algo comum.

MC: Mas, até que haja a naturalização, você não acha que ela seja importante para que os jovens, independente de identidade de gênero ou orientação sexual, se vejam possíveis?
M: Quando você me diz representatividade, entendo que está falando sobre uma pessoa em um elenco geralmente grande de pessoas. Não estou invalidando a presença da pessoa trans nesses locais. Jamais faria isso, até porque precisamos disso. O que estou dizendo é que ela ratifica o preconceito existente. Comecemos, ao invés de colocar uma, colocarmos várias pessoas trans. Se elas não cabem no seu roteiro ou no seu line up em números maiores, isso também pode ser um sinal de reforço desse preconceito. 

Existem pessoas trans trabalhando em todas áreas do entretenimento, inclusive na parte técnica. Mas o que vemos são somente participações no palco, o que muitas vezes evidencia o caráter de zoologização da nossa existência, que somente interessa para as equipes de produção um corpo trans que apareça, geralmente em um contexto sensualizado. Um corpo trans que faça trabalho técnico não é chamado, porque ele fica escondido e não trás tanto retorno político para quem está produzindo. Queremos entrada e trabalho, mas não somente em determinados tipos de situação. Quero mais de um corpo trans em cena! Quero mais de uma artista trans nos line ups de festivais. 

O problema é que sempre em estarmos sozinhas nesses lugares. Nós não devemos pautar o mundo pelo que ele é, e sim pelo que queremos que ele seja. Me parece que qualquer espaço que ganhamos temos que agradecer até dizer chega, como se fosse uma espécie de caridade. O que falta é a percepção de que estamos lá enquanto manifestação legítima e profunda das nossas artes e que ela é potente e histórica, assim como a arte que já foi produzida ao longo dos tempos e permanece até hoje em nosso subconsciente.

MC: Há pouco tempo houve uma discussão sobre o lugar de fala, quando uma personagem trans foi interpretada por uma mulher cis no teatro. Qual a sua opinião sobre o lugar de fala na cultura?
M: Acho muito importante que as pessoas cis entendam que o transfake é tão grave quanto uma pessoa não asiática interpretando pessoas asiáticas, quanto uma pessoa branca fazendo um black face, quanto uma pessoa não indígena interpretando uma personagem indígena. A branquitude heteronormativa e cis precisa aprender definitivamente que ela não pode fazer tudo que lhe dá na telha e que não aceitaremos mais nenhum tipo de desculpas, principalmente aquela clássica desculpa preconceituosa: “a pessoa não atuava dentro da qualidade pedida”. Que qualidade? Qualidade estética pré-definida pela branquitude cis? Então o que eles querem? Contar nossas histórias como são em corpos como os nossos? Ou querem se apropriar, ser higienista, e nos modificar até nos encaixarmos de forma doentia a sua norma? Tudo isso é feito pelo simples fato que essas pessoas dominam o capital, mas não aceitaremos ou deixaremos de criticar esse comportamento sintomático que toma conta das pessoas eurocentristas desde os tempos da fundação da sociedade moderna.

MC: Como você vê a retratação da transexualidade nas produções culturais? Ainda falta falar mais abertamente sobre o assunto? Você acha que a forma como é abordada ainda é pejorativa ou reforça estereótipos?
M: Geralmente é de forma pejorativa, porque são pessoas cis que escrevem esses textos, roteiros e discursos. Falta pesquisa de base, conhecer e conversar com travestis. Muitas dessas pessoas que fazem arte sobre nós ainda não tem contato com nossa comunidade e isso vai sempre incomodar. Geralmente quando vemos nossa imagem nos locais, ainda é de no sentido patologizador, com aquela velha história batida do “não nasci no corpo certo”, quando na verdade nossa comunidade também é cheia de vida e nosso sentimento estaria mais voltado para algo como “nasci no corpo certo, mas na sociedade errada”. O que a maior parte de nós sente é a opressão da sociedade para com o corpo que queremos ter e quando uma pessoa cis escreve algo como “estar no corpo errado”, reforça a ideia de que certo é somente o corpo culturalmente produzido pelo hegemonia cristã ocidental. A caneta e a máquina de escrever cis vão querer pautar nossa existência quase sempre pela dor e, na verdade, estamos caminhando em direção oposta: a da libertação, afetividade e amor.

MC: Como transvestigênere, você encontrou/encontra barreiras para ter o reconhecimento da sua arte?
M: Barreiras para uma arte verdadeira e visceral sempre existiram e sempre vão existir independente do tipo de pessoa que você seja, e isso não seria diferente para nós, inclusive é mais aprofundado. Não é incomum eu chegar aos locais de trabalho e as pessoas acharem que eu vou lá para fazer outro tipo de performance que não seja a de tocar instrumentos. Na cabeça da maior parte das pessoas, uma travesti tocar muitos instrumentos é algo impossível. Isso já evidencia o preconceito logo na entrada. Depois que eu e toco meus instrumentos, o paradigma sobre a minha existência muda e leva a um segundo lugar de preconceito, que é o da exotização. Isso sem contar que, de fato, temos dificuldade ainda de receber convites e estar em meios que temos direito e qualidade, onde geralmente são frequentados por pessoas cis e heterosexuais. Não queremos nossa arte exposta na sala escondida no fim do corredor. Somos boas o suficiente para ser protagonistas, portanto queremos ocupar esses espaços que também são nossos por direito.

MC: Diante do cenário atual de intolerância crescente, falar sobre o tema é uma forma de resistência?
M: É importantíssimo que o debate aconteça na sociedade atual. É importante tomarmos essa frente, mas é mais importante que ele parta das pessoas cisgêneras heteronormativas, para podermos abordar essas questões a partir de onde existe o problema. Vejo muitas rodas de conversa sobre transgeneridades, mas raramente vejo a cisgeneridade debater sobre ela mesma. Essa é uma das coisas mais urgentes nos tempos de hoje.

MC: Você acha que a cultura pode contribuir para que as pessoas vejam a transexualidade de forma mais natural? De que forma?
M: A cultura é das mais poderosas ferramentas para manutenção da sociedade, mas ela está em controle do Estado, como tudo. Isso permite um certo desvio de norma, que também é incorporado pelo capitalismo, que muda de forma leve o paradigma atual. Não devemos nos iludir e achar que essa mudança vai além do sistema, porque estamos exatamente onde ele quer que estejamos. Se morremos aos 35 anos, é porque a sociedade escolheu assim e se sente confortável com isso. O que acontece agora é um esforço para que façamos de alguma forma parte desse mesmo sistema que nos mata. Isso nos trás contradições, mas também certas esperanças e habilidades de sobrevivência em meio ao caos. Se a sociedade vier a nos naturalizar, tenha certeza que foi porque ela achou uma função para nós como engrenagem de uma máquina de salsichas muito maior que nós e nossos anseios. Por isso devemos tomar cuidado em como queremos expor essa arte e o que queremos atingir com ela enquanto comunidade.

About The Author

Antonio Saturnino

Jornalista, atleta frustrado, cantor de karaokê e pai de pets. Ama música e escrever sobre o tema durante anos lhe permitiu conhecer novos cantores e estilos musicais, então vocês verão muita coisa diferente e nova por aqui. Dança no meio da rua, adora cozinhar e estar em conexão com a natureza.

Related Posts

Leave a Reply

Your email address will not be published.