Atenção: Este artigo contém spoilers.

O cinema não tem o objetivo exclusivo de entreter, mas, também, de ser uma ferramenta de transformação social. Porém, verdade seja dita, durante muito tempo, ele não cumpriu esse papel. Pelo contrário, a indústria de “Hollywood” foi um retrato perfeito do mundo racista, machista, misógino, xenófobo e homofóbico. 

No último dia 1º de maio, estreou Hollywood, série original da Netflix dirigida por Ryan Murphy e Ian Brennan. A produção tem diversos acontecimentos reais como pano de fundo, mas com mudanças de desfechos, que mostram como a história do cinema poderia ter sido mais inclusiva e transformadora, se a indústria cinematográfica tivesse enfrentado o sistema preconceituoso da época. 

Ambientada na década de 1940, a série conta a história do filme fictício “Peg”, inspirado na história real da atriz Peg Entwistle, uma atriz que se suicidou ao pular da letra H do emblemático letreiro de Hollywood, em 1932, depois de uma carreira inexpressiva no cinema. Na série, o roteiro é escrito por Archie Coleman (Jeremy Pope), um roteirista preto e gay e, durante a trama, o nome do longa foi alterado para “Meg”, ajustado para ser interpretado por Camille Washington (Laura Harrier), uma atriz preta. Avis Amberg (Patti LuPone), durante o tempo fica à frente dos Estúdios Ave, e decide que, produzir um filme com uma atriz negra sem colocá-la no papel estereotipado de doméstica era o correto a ser feito, primeiro porque Camille tinha realizado o melhor teste nas audições, e segundo porque era importante que os pretos se vissem representados nas telas.

Amberg também dá um papel de destaque à Anna May Wong (Michelle Krusiec), inspirada na vida da atriz de mesmo nome, que foi a primeira de ascendência asiática em Hollywood. A série ainda conta a história de Ernie West (Dylan McDermott), inspirado na história real de Scotty Bowers, um ex-fuzileiro naval, que havia se mudado para a cidade para realizar o sonho de ser ator, dono de um posto de gasolina que também funcionava como um esquema de prostituição para a alta sociedade de Hollywood; de Henry Wilson, baseada na vida do agente de atores que transava com muitos deles para inserí-los em produções; e de Rock Hudson, galã de cinema na vida real. Na série, Meg ganha diversos prêmios no Oscar de 1948, entre eles o de melhor filme, roteiro e atriz.

Alguns pontos e falas chamam atenção, algumas por continuarem atuais. Uma delas foi: “você tem o visual certo”, dito para atores ruins, mas que seguiam o padrão de beleza. Vamos e convenhamos, ainda há muita gente de talento questionável que ganha fama por ter a aparência exigida pelo mercado. Em outro momento, a atriz Anna May reclama por sempre interpretar personagens estereotipadas de vilãs asiáticas, assassinas e traidoras. Ainda hoje isso acontece recorrentemente, com negros em papéis de criminosos e empregados. 

A série é um importante exercício de revisionismo histórico e “corrige” algumas injustiças que mostram como o cinema podia, sim, ter sido uma importante ferramenta de transformação e inclusão à época.   A entrega do prêmio de melhor atriz para Camille mostra o quanto a academia foi covarde e só teve culhão de premiar uma atriz negra na categoria em 2002, quando Halle Berry levou a estatueta por sua atuação em “A Última Ceia”. Poderia ter sido um marco transformador para que artistas, independente de etnia, fossem reconhecidos pelos seus trabalhos, mas isso não aconteceu. A premiação sofreu boicotes nos anos seguintes por indicar apenas atores brancos para as principais categorias.

Rock Hudson, na produção da Netflix, assume publicamente que é gay em 1948, mas fora da ficção isso aconteceu apenas em 1985. Na série, ele recebe uma homenagem do seu namorado durante a cerimônia do Oscar, o roteirista Archie, que ganha o prêmio de melhor roteiro original. Na vida real, o primeiro preto a vencer na categoria foi Jordan Peele, pelo filme “Corra”, e isso só aconteceu em 2018, após diversos protestos por inclusão. Além disso, a primeira vez que uma parceira do mesmo sexo foi mencionada na premiação foi em 1992, quando Debra Chasnoff, que levou a estatueta pelo melhor documentário em curta-metragem, agradeceu sua parceira, Kim Klausner.

Queen Latifah dá vida à atriz Hattie McDaniel, primeira preta a receber o Oscar de melhor atriz coadjuvante, por sua atuação como a empregada do filme “E o Vento Levou”, em 1940. Na série ela menciona, em conversa com Camille, que foi impedida de comparecer à cerimônia de premiação e foi colocada para dentro às pressas quando souberam que ela venceria. Na vida real ela entrou no evento, mas não pôde se sentar na mesma mesa que seus colegas de elenco e também foi excluída da festa de celebração, realizada em uma boate restrita a brancos.

A série é uma homenagem a tantos pretos que tiveram (e ainda têm) a carreira silenciada pelo racismo; aos gays e lésbicas, que precisaram (e ainda precisam) viver dentro de um armário sufocante para poderem seguir o sonho de ser estrelas de cinema; a tantas  mulheres que foram (e ainda são) consideradas incapazes de estarem à frente de grandes estúdios cinematográficos, pelo simples fato de serem mulheres; é uma crítica à sociedade xenófoba e preconceituosa da época e dos dias atuais; é uma crítica ao Oscar, que não cumpriu o seu papel cultural de transformação social.

Este ano, na 92ª edição, pela primeira vez, um filme asiático e não falado em língua inglesa levou a estatueta de melhor filme. A produção sul-coreana “Parasita” fez história! Mais importante do que fazer história, que esse seja o marco de novos tempos no cinema. Que seja uma nova era para que, de fato, a indústria cinematográfica de Hollywood entenda o seu poder de influência na sociedade e aja para que, ao invés de perpetuar injustiças, promova a igualdade.

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Antonio Saturnino

Jornalista, atleta frustrado, cantor de karaokê e pai de pets. Ama música e escrever sobre o tema durante anos lhe permitiu conhecer novos cantores e estilos musicais, então vocês verão muita coisa diferente e nova por aqui. Dança no meio da rua, adora cozinhar e estar em conexão com a natureza.

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