Nas últimas semanas o mercado audiovisual brasileiro tomou um susto. Uma auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União) divulgada no dia 27 de março apontou uma série de irregularidades nas prestações de contas da Ancine (Agência Nacional do Cinema). O órgão fiscalizador determinou que os repasses de verbas públicas para o setor audiovisual brasileiro sejam interrompidos caso a situação não seja corrigida num prazo de 60 dias.

Mas o que é a Ancine?

A Ancine é o órgão responsável por gerir os incentivos públicos à produção de obras audiovisuais nacionais, da regulação do mercado audiovisual e da fiscalização das leis e normas que regem o setor. Seu objetivo é o desenvolvimento da indústria cinematográfica brasileira, atuando em todos os elos da cadeia produtiva, na produção, distribuição e exibição, e em todos os segmentos de mercado – cinema, televisão, e outras mídias. Foi criada como agência reguladora, o que lhe confere o status de autarquia, ou seja, possui autonomia financeira com fonte direta de recursos que vem da própria atividade audiovisual.

Qual a irregularidade encontrada pelo TCU?

O tribunal questiona a metodologia de prestação de contas utilizada em alguns projetos, chamada Ancine+Simples. Trata-se de análise por amostragem, para que a prestação de contas não precisasse ser feita de nota fiscal por nota fiscal para comprovar o destino dos recursos públicos. A ideia era desburocratizar o setor. A metodologia atual foi implantada em 2015 e havia sido autorizada por decreto presidencial. A partir da notificação do TCU, a Ancine tem 60 dias para apresentar um plano de ação para reanalisar as prestações de contas dos projetos audiovisuais aprovados através desta metodologia.

O TCU apontou problemas em contratos com vários filmes, listando desde a ausência de comprovantes de despesas até gastos muito acima do que foi orçado. Entretanto é importante frisar que: “Não existe condenação”, conforme fez questão de dizer o Ministro do TCU, André Luís de Carvalho, após saber do clima de tensão que rapidamente se alastrou pelo setor. “Existe uma investigação e os responsáveis pelas produções serão chamados a se explicar.  Se estiverem corretos, tudo bem. Caso contrário, serão penalizados de acordo com a lei”, disse.

O que diz a Ancine?

A Ancine divulgou dois comunicados na tentativa de acalmar o setor. No primeiro, em 29 de março, afirmava estar “de acordo com a necessidade de aperfeiçoar os instrumentos de controle”. Esclareceu ainda, que já apresentou um plano de trabalho que “ainda não foi analisado pelo TCU. Razão pela qual não poderia ser contemplado no referido acórdão”. O plano, porém, esbarra em uma dificuldade de infraestrutura. A Ancine não tem funcionários suficientes para analisar tantos contratos.

Uma produção audiovisual média gera milhares de notas fiscais. Multiplicados pela quantidade de projetos geridos pela agência, a prestação de contas exigiria a conferência de milhões de documentos por produção.  Por exemplo, só a linha de financiamento do Fundo Setorial do Audiovisual tem 3.200 projetos ainda esperando para serem analisados.

No segundo comunicado, em 01 de abril, a agência pede um “prazo realista para vencer o passivo de prestações de contas já existente”. O período oferecido pelo TCU foi de 12 meses. A agência afirma já ter desenvolvido uma nova metodologia de prestação de contas que vai substituir a atual e o novo modelo está previsto para entrar em vigor em abril. De acordo com o Ministro Carvalho, o plano de ação apresentado havia completado 73% de seu objetivo, mas alguns pontos ainda necessitam de maiores esclarecimentos.

Por fim, a Ancine afirma que projetos em andamento não serão prejudicados, já que “existe um lapso temporal médio para serem finalizadas, de modo que as correções apontadas pelo TCU podem ser feitas com os processos em andamento”.

Por que a gestão Bolsonaro preocupa o setor?

Desde a criação das leis de incentivo ao audiovisual, na década de 1990, a prestação de contas é um tema que gera desconforto. Alguns casos de má gestão, (entre os mais famosos ‘Chatô’, do diretor Guilherme Fontes) elevaram a preocupação sobre a capacidade da gestão dos recursos públicos através da agência.

Apesar dos apontamentos do TCU sobre o uso de verbas públicas pela Ancine não serem novos, esta auditoria aparece em um contexto político delicado devido à eleição do presidente Jair Bolsonaro e o clima político do momento. O atual governo é declaradamente averso à algumas políticas de incentivo à cultura e vem prometendo combatê-las.

Seu Ministro da Cidadania, Osmar Terra, pasta à qual a Ancine está vinculada, pouco fala sobre o destino da agência. No período da transição entre governos, de 2018 para 2019, uma série de decisões ficaram em aberto, como a composição do Conselho Superior de Cinema, ainda não ratificado pelo governo atual, e do comitê gestor do FSA.  O decreto de cota de tela, instrumento que discrimina o número de dias que toda sala de cinema comercial tem que exibir filmes brasileiros de longa-metragem, também não foi publicado em 2018, para valer em 2019. Não há, até o momento, nenhum posicionamento do governo Bolsonaro sobre sua alteração ou publicação. Esse modelo de decreto anual para aplicação da regra funciona desde 2001.

Ainda, em dezembro de 2018, a Ancine foi alvo de um mandado de busca e apreensão da Polícia Federal, que recolheu computadores, HDs, livros contábeis e outros itens utilizados por cinco integrantes do órgão, incluindo seu presidente naquela gestão, Christian de Castro. A operação foi amplamente criticada pelos profissionais do audiovisual, tido como um ataque gratuito, uma vez que não haviam indícios (pelo menos, não de conhecimento geral) de contravenção.

Diante deste clima de instabilidade, o Ministro André Luís de Carvalho procurou acalmar o setor audiovisual, já que os profissionais da área estão apreensivos com a possibilidade de que produções para o cinema e a TV sejam interrompidas com a decisão do TCU. “O TCU não determinou a suspensão das atividades da Ancine, apenas notificou a agência para que mude o sistema de prestação de conta. A medida visa que a Ancine atente para a celebração de novos projetos de acordo com sua capacidade de controle”.

Na prática, isso quer dizer que a agência (responsável por regular e fomentar o audiovisual brasileiro) poderá firmar novos contratos, apenas se for capaz de analisar minunciosamente a contabilidade de cada um.

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Matraca Cultural

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