Durante anos o samba foi associado à malandragem, no mau sentido da palavra, e o povo negro resistiu. Muitos foram presos por andar com pandeiro na rua, mas o negro resistiu. Quando as rádios brasileiras não davam espaço para o samba e ele não era um “produto” economicamente lucrativo, o negro resistiu. Hoje, é uma das principais contribuições sociais, não apenas como forma de lazer e entretenimento, mas também como manifestação política. É uma cultura ancestral, instrumento de luta e a resistência de um povo marginalizado e, por isso, o lugar de fala e protagonismo do negro deve ser respeitado.

O termo “lugar de fala” é o conceito que busca o fim da mediação por grupos privilegiados em espaços de debate público. Ou seja, ele dá voz a grupos que, historicamente, têm menos oportunidade de se posicionar e dá o poder da fala às pessoas que sofrem preconceito. Quem deve ser ouvido em debates sobre racismo é a população negra, pois são essas pessoas que sabem exatamente qual é a dor que elas sofrem ao serem discriminadas por causa da cor da pele. Dar o protagonismo às minorias ao falar sobre os preconceitos que elas sofrem é uma forma de enxergar e entender melhor o outro.

Para Alexandre Magno Nenê, presidente da União das Escolas de Samba Paulistanas (Uesp), os negros estão perdendo o devido destaque no carnaval. Ele também afirma que o samba está passando por um processo de embranquecimento. “A beleza negra, em geral, não é valorizada pela mídia. A cultura trazida pelos nossos ancestrais é aceita, desde que o branco seja o protagonista”, conclui.

De acordo com Leci Brandão, Deputada Estadual e Sambista, esse processo tem início quando o samba deixa de ser uma manifestação cultural genuína e se torna um produto econômico atrativo. Para ela, a partir do momento que a TV começou transmitir os desfiles de carnaval, muitas características marcantes das escolas de samba foram sumindo. O tempo do desfile é uma das principais causas, pois ele fez, por exemplo, muitas agremiações tirarem a velha guarda da frente dos desfiles e a colocou em cima de carros alegóricos, para que as escolas não percam pontos, já que esses integrantes, em razão da idade, caminham mais lentamente. Ela também critica as mega produções, que passaram a ser a principal preocupação dos carnavalescos, deixando as raízes e a singeleza de lado.

A comunidade das escolas está cada vez mais distante dos desfiles. Há fantasias cuja locação chegam à importância de R$ 1.000,00, que é um valor praticamente impossível para membros das agremiações pagarem. Algumas vezes, há patronos para subsidiar esses custos. Mas, salvo algumas exceções, ele tira do desfile o negro que ajudou a fundar a escola. Além disso, a forte influência das igrejas evangélicas tem feito as baianas se afastarem dos desfiles, pois grande parte dessas religiões consideram o carnaval um pecado “abominável”.

“Muitas vezes se prioriza a atriz branca que tem dinheiro. Porém esse não é o maior problema, e sim deixar a comunidade de fora de um espaço que é dela. O negro precisa entender a importância do samba como movimento político e como ele próprio é fundamental para a valorização do samba”, ressalta Kaxitu Ricardo Campos, presidente da Federação Nacional das Escolas de Samba (Fenasamba).

Tadeu Kaçula, sambista e sociólogo, ressalta que, além de lugar de fala, o estilo é um espaço de resistência de uma população que ficou esquecida e alheia às construções culturais. Para ele, a apropriação cultural no samba se dá, em grande parte, por causa do potencial econômico e pelo status que representa, atualmente, presidir uma escola de samba, por exemplo.

É preciso respeitar as raízes e entender que cada batida tem um significado. É necessário compreender o porquê de cada instrumento e o motivo de cada batida. Entender que muitos elementos foram inseridos em momento de luta ou repressão, ou devido às circunstâncias do momento em que foram criadas. O samba está diretamente ligado à fé dos ancestrais dos negros e muitos elementos foram incluídos como de reverenciar algum orixá, por exemplo. Cada mudança feita, às vezes na intenção de modernizar, significa o sepultamento das origens e da história.

“O samba precisa voltar para as suas origens: pé no chão e abraçar a comunidade. Um dos maiores erros é entregar nosso patrimônio para quem não sabe quais são as nossas lutas e que não entende o que a gente passa”, completa Mumu de Oliveira, sambista e arte-educador da Fundação Casa.

Leci Brandão finaliza dizendo que ao ressaltar a importância do lugar de fala, o objetivo não é segregar ou restringir o acesso de outras etnias no samba, mas que o negro não pode perder o protagonismo em algo construído por ele próprio. “Estamos em um país onde a miscigenação predomina. Não temos como fugir disso e é bom ver a presença da diversidade no samba. Mas quem chega depois, precisa entender que é um lugar fundado pelos negros, pelos resistentes da época. Eles são bem-vindos, mas precisam respeitar a nossa história”.

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