O Brasil vive um momento curioso. Pela primeira vez na história, o cidadão comum tem mais facilidade em nomear Ministros do STF do que jogadores da seleção brasileira masculina. Estamos ligados em Brasília! Não há uma roda de conversa que não se discuta política e não há nenhum evento que não possa ser politizado. Até tomar refrigerante de canudinho tem lado. Creio que este cenário contribuiu para um caso curioso no cinema nacional. Os dois filmes brasileiros mais populares desse ano, até então, são documentários!

1964: Entre Armas e Livros, produzido pelo Brasil Paralelo; e Democracia em Vertigem da cineasta Petra Costa.

Antes de mais nada, vamos deixar claro uma coisa: documentário tem ponto de vista sim. Para explicar, dizia-se nas faculdades, documentário não é jornalismo. Este sim deve ser imparcial. Documentário apresenta uma narrativa e destaca-se os fatos aliados, abranda os divergentes e de quebra já mastiga e conclui a ideia para convencer o espectador. Mas essa lição perdeu o efeito já que hoje jornalismo também é assim.  Enfim, voltando aos filmes em questão temos duas situações distintas e bem interessantes.

1964: Entre Armas e Livros, dirigido por Filipe Valerim e Lucas Ferrugem, é um documentário que se propõe e discutir o período de governo militar no Brasil. Reconstrói a linha do tempo, justificando o golpe porque haveria uma perigosa ameaça comunista eminente. De acordo com a produção censura e a repressão não foram tão severas como contam os livros de história, que teriam sido escritos por pessoas contaminadas por ideais da esquerda. O filme pode ser assistido na website Brasil Paralelo, ou no Youtube onde está disponível de graça.

Democracia em Vertigem, dirigido por Petra Costa, vai da eleição à prisão do ex-presidente Lula, passa pelo impeachment de Dilma e finaliza na eleição do atual presidente. No interim, apresenta argumentos buscando comprovar o esquema internacional que tinha o objetivo de devolver o poder aos políticos de direita ávidos por poder e apontando a fragilidade da democracia nacional. O filme teve estreia mundial no Festival de Cinema de Sundance de 2019. A Netflix adquiriu os direitos de distribuição do filme, e também bancou projeções em cinemas de Nova York e Los Angeles. Veja só que coincidência, projeções nos cinemas de Nova York e Los Angeles são também pré-requisitos para adiante concorrer ao Oscar.

É interessante para mim, que dependendo da simpatia política do espectador, um filme possa parecer atraente, e o outro uma ideia absurda. Como eu disse antes, documentário tem ponto de vista, assim como você e eu. Mas vamos deixar isso de lado um pouquinho. Como esta não é uma coluna de política, e sim de cinema, convido o leitor independente da posição a refletir estas obras sob esta ótica.

Começando pela autenticidade. O filme 1964 nega ser partidário. Declara-se sem lados e usa como escudo “acontecimentos históricos”.  De fato, acontecimentos históricos são abordados, porém, são exclusivamente interpretados por personalidades declaradamente de direita. Já, Democracia em Vertigem não esconde sua posição política. Inclusive dedica boa parte do tempo de tela para reforçar a criação da narradora entre pais militantes da esquerda. Este será um filme com viés. É claro que aqui, a história também é avaliada por uma ótica unilateral. Isso é louvável, porque os dois são – mas apenas Democracia em Vertigem tem a coragem e honestidade para se assumir.

Outro ponto forte do filme da Petra é a narrativa. A documentação de imagens começa lá atrás na primeira eleição da Dilma com um acesso raro aos bastidores. Naquele momento era impossível definir como tudo isso iria acabar. Chegou um momento que depois de tudo que aconteceu, a cineasta parou, olhou o material que tinha, e a partir misturou com seus sentimentos pessoais para criar o filme. Democracia em Vertigem não nasceu planejado é um produto da vivência da artista. Nesse quesito, 1964 segue mais tradicional. Ele nasce com objetivo claro, e os pesquisadores coletam o material para concluir a ideia inicial. Funciona como debate, mas, em sentimento perde na qualidade artística.

E por falar em arte, Democracia em Vertigem é lindamente executado em ritmo e cinematografia. Com tomadas contemplativas, e narração poética, Petra Costa se prova mais uma vez uma cineasta talentosíssima. O filme é honestidade pura, mesmo que refletido nas verdades da Petra. Apresenta a tal “auto avaliação” partidária de forma honesta, e tão cobrada pela oposição. E mais, acompanhada de uma reflexão muito profunda do cenário atual. Mesmo quem não gosta da Dilma e o do Lula irão se impressionar com a força destes personagens. Dilma é inabalável. Lula, inspirador.

Também, vale refletir sobre o processo de exibição. Nesse caso, 1964 foi muito injustiçado com campanhas de censura, e inclusive, um episódio lamentável aonde uma grande rede exibidora voltou atrás na mostra do filme porque “não apoiam organizações políticas”. Uma bobagem é claro. Um cinema que se recusa a mostrar filmes políticos se recusa a mostrar filmes. O Brasil Paralelo teve que recorrer as plataformas abertas para se promover. Por outro lado, o filme da Petra, que é político também, conseguiu a façanha de ser lançado como um Original Netflix.  E antes que se reclame, fica a questão: será que empresas como Netflix, Facebook e a Globo tem uma vertente ideológica e fazem de tudo para “lacrar”? Ou, em segunda hipótese, será que possuem uma gigantesca base de dados em que os executivos analisaram e detectaram o posicionamento empresarial mais vantajoso?

Como cineasta, o filme da Petra me impressionou mais. Independente da minha visão política, como cineasta almejo apenas a convergência. Isto é, ainda que fosse possível alcançar talento tão raro.

 

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Matraca Cultural

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