A arte como instrumento de ressocialização e reeducação Antonio Saturnino janeiro 29, 2020 REPORTAGEM “Se não acreditarmos que um detento pode se ressocializar, deixaremos de crer que a humanidade pode mudar”, Edson Sodré Teixeira O Centro Histórico e Cultural Mackenzie (CHCM) exibe, até o próximo dia 31, a exposição “Recomeço”. A mostra reúne trabalhos de reeducandas do Centro de Progressão Penitenciária Feminino Dra. Marina Marigo Cardoso de Oliveira do Butantã, em São Paulo, e integra o Projeto de Extensão “Inclusão social de residentes do sistema carcerário”. Ao todo, 15 obras estão expostas em molduras e frases adesivadas nas paredes. O projeto é desenvolvido em parceria com a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) e a proposta da ação é a reinserção na vida cotidiana de reclusas que hoje cumprem pena no regime semiaberto. “O meu processo de curadoria se iniciou desde o primeiro contato com as alunas. Percebi que o trabalho delas valia a pena ser exposto pelo envolvimento de cada uma, pelo brilho nos olhos, bem como a vontade, a determinação e a coragem. A arte é muito importante na vida delas, pois ajuda a expressar as alegrias e tristezas. Elas podem gritar por meio da escrita e das cores e tirar o sufoco, o aperto no peito e o choro parado na garganta. Apoiar essas mostras, principalmente dentro de uma universidade, dá exemplo da necessidade de que a população se envolva em projetos sociais. A arte reeduca as alunas e a sociedade. É uma via de duas mãos”, comenta Fanny Grinfeld, curadora da exposição e professora de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Uma das reeducandas, S.M., cujo trabalho integra a exposição, fala sobre a mudança de perspectiva de vida que a arte trouxe para ela. “Acredito que essa oportunidade foi um presente de Deus para começar uma vida nova. É um renascimento, um recomeço, uma expectativa de melhorias. Hoje não sou mais aquela pessoa que entrou no presídio há algum tempo. Tenho uma visão de futuro, com oportunidades, amigos e melhores perspectivas, porque sei que terei uma mão estendida para me apoiar. Pintei uma semente, pois estou nascendo para uma vida nova e cheia de vertentes positivas. Estou tendo a chance de recomeçar minha vida aos 52 anos de idade. Desistir, jamais”. “O programa visou capacitar 15 reeducandas em nível superior no ano de 2019. Neste ano, serão 30 em um curso misto, ou seja, na modalidade EAD (Ensino a Distância) e presencial, sendo que no EAD não há acesso à internet. O Mackenzie disponibilizou três cursos de nível superior, Marketing, RH e Vendas. Essa é uma oportunidade de mudança de vida às pessoas privadas de liberdade que estão fazendo parte do programa. O comprometimento das alunas reeducandas é notório, conforme percebemos nas reuniões feitas com os responsáveis pelo projeto”, explica Sebastião Romão, diretor da Diretoria Adjunta de Atendimento e Promoção Humana (Diaph), da Fundação “Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel” – Funap. A arteterapia, de acordo com especialistas, fornece recursos para recuperar ou melhorar a saúde mental, o bem-estar emocional e social da pessoa. Ela permite o desenvolvimento do foco e aguça a sensibilidade de quem vive uma realidade de tensão e violência, facilita a reflexão e possibilita mudanças de comportamento necessárias. Todas as manifestações artísticas podem ser utilizadas como forma de terapia, desde as artes cênicas, plásticas, músicas e a dança. Sérgio David, psicólogo e coach, especialista em comportamento humano, explica a importância da introdução das artes no processo de ressocialização de reclusos. “Há estudos dentro da Psicologia e Neurociência que revelam que, sim, a arte transforma as pessoas. Se iniciarmos a conversa falando somente sobre o efeito de observá-la, chegaremos a sensações de bem estar comparáveis às que experimentamos quando encontramos alguém que amamos. Imagine o efeito de ‘fazer’ arte! Ela ajuda os reclusos a melhorarem o foco e a disciplina, mantendo a atenção fora da realidade de violência em que se encontram inseridos. Além disso, muitos se envolvem de tal maneira que encontram para si uma profissão nos palcos ou fora deles (cenografia, iluminação, contrarregragem, etc)”. Ele continua dizendo que tanto a pintura quanto a música, teatro, dança ou outra expressão artística, geram bem estar e ativa regiões cerebrais que produzem satisfação. Da mesma forma, as situações de tristeza, frustração, medo e irritação também são ativadas por gatilhos emocionais. “Se nós produzirmos mais momentos de satisfação e alegria, criamos mais gatilhos positivos, e isso a arte faz muito bem”, completa. A Arteterapia no processo de ressocialização não tem como objetivo principal formar artistas, e sim criar mecanismos para que essas pessoas possam se expressar e externar sentimentos. Ela ensina a disciplina, desperta novos valores e dá uma nova perspectiva de vida. Nesse processo, acabam surgindo atores, pintores, artesãos, músicos etc. Adriano Rodrigues, morador da comunidade do Jacarezinho que hoje vive em liberdade, conta como a arte mudou a vida dele. “Eu era um jovem que queria ter um herói. Infelizmente, eu cresci, me envolvi no crime e virei um marginal. Eu fui condenado, mas nunca fui ressocializado. O crime foi algo que entrou na minha vida pela necessidade. É algo até meio difícil de falar, pois muitas pessoas passam dificuldades, mas eu não encontrei outra forma. Durante o período de reclusão, meu pai e minha mãe faleceram. Aquilo estava me tragando, me sufocando, até que eu conheci o teatro. A arte tem força para te fazer levantar, para resgatar e te fazer um novo homem. Hoje eu sou uma nova pessoa, sim, por causa da cultura. Ela me ajudou suportar a dura realidade e me ensinou a respeitar para ser respeitado”. Edson Sodré Teixeira, conta que entrou para o teatro no presídio, pois lá era o local de acesso a um ponto de fuga que estava sendo preparado por um grupo de reclusos. “Eu era muito tímido, mas precisei superar para integrar o grupo de teatro, pois a vontade de fugir era muito grande. A fuga não deu certo, mas eu já estava envolvido com a cultura. Ali eu me sentia livre, era um lugar onde eu podia rir e brincar com os companheiros. Fui gostando cada vez mais. À época, eu não tinha nem a 8ª série. Me dediquei aos estudos, conclui os ensinos fundamental e médio e prestei vestibular. Passei na UERJ e UFRJ. Consegui a melhor fuga que um detento pode ter, a do pensamento, a liberdade de pensar. Se não acreditarmos que um detento pode se ressocializar, deixaremos de crer que a humanidade pode mudar. O teatro fez de mim a pessoa que eu sou hoje”, conta. Hoje ele cumpre sua pena no regime semi-aberto, estuda licenciatura em Teatro na Universidade Federal do estado do Rio de Janeiro – Unirio e é um dos fundadores do Grupo Kriadakí, criado em um presídio de segurança máxima do Rio. Atualmente o grupo se apresenta em comunidades carentes, para dependentes químicos e em presídios da cidade. Ele finaliza. “Ide por todo mundo e levai o teatro e a educação para toda a criatura, esse é o nosso evangelho. A Elke Maravilha, que era a madrinha dos presidiários, certa vez me disse uma frase que, até hoje, a declamamos no final de todas as apresentações: A arte torna a vida suportável”. 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