*Por Ayrton Montarroyos

Esse trabalho é fruto de uma pesquisa profunda que consiste em tudo o que faço. De maneira quase exaustiva, vivo procurando canções e inventando histórias para as músicas que me tocam; catalogo-as em diversos cadernos destinados somente aos pensamentos e ideias do meu trabalho.

Quando fui imbuído pelo meu empresário Thiago Marques Luiz a montar um espetáculo de música caipira para um determinado festival, aproveitei a oportunidade para testar algumas canções que queria ouvir na minha voz. Estava apaixonado por Carmélia Alves, que durante um depoimento ao MIS, ao qual tive acesso, cantou um trecho de “Guriatã de Coqueiro”. Aquela música me pegou em cheio, por isso, vi no espetáculo proposto por Thiago a chance de cantar essa música e tantas outras que enchiam os meus cadernos.

Cantei no festival algumas dessas canções. Poucos meses depois, fui contratado para mais duas datas em São Paulo e queria estrear um novo espetáculo, que pudesse fazer brotar em mim a ideia de um novo disco, quem sabe. Voltei aos cadernos. Ao todo, quase oitenta canções passaram sob o meu crivo, mas tudo era ainda muito amorfo. Não sabia o que fazer daquele repertório, sequer sabia se tinha um repertório em mãos. Pelo motivo sertanejo que ainda me inspirava, voltei às leituras de João Cabral de Melo Neto: “O Rio”, “O Cão Sem Plumas”, “Morte e Vida Severina”… títulos que vira e mexe, fazem parte das minhas leituras distraídas e sem intenção a nada.

Me lembrei de uma frase de João, atribuída a um jogador de futebol do Recife: “ambidestro do seco e do úmido”. Como recifense morador de São Paulo, sempre me senti ambidestro de dois mundos e notei na minha trajetória a trajetória do personagem que começava a se apresentar diante de mim: minha inocência, construída numa cidade criada por sertanejos, com cara de metrópole.

Meus amores, meus sonhos e expectativas, tudo isso que foi se transformando, ora se perdendo, durante o percurso da minha chegada à realidade e à oportunidade que para mim chamavam-se São Paulo. Me lembrei de quantas noites frias passei, mal agasalhado, sem expectativa de nada, afim de uma oportunidade naquela cidade que, aos meus olhos, me prometia algo. Minhas frustrações iniciais, meus medos, os eternos retornos a Recife, quando o dinheiro acabava. Tudo isso com 15 ou 16 anos, tentando ser alguma coisa que eu achava que era.

Envolto pela curiosidade e ambição, movido por uma força que me levava a cantar, apesar de tudo e obstinado a ganhar o meu espaço, fui seguindo naquele mar imenso de incertezas, alguns naufrágios e durações que me pareciam eternas até por fim, conseguir me estabelecer como morador e artista desse lugar. Em São Paulo tudo se transformou. Tudo.

Não consigo falar mais além do que já escrevi, é uma página muito pessoal e atual da minha história, mas sinto que de tudo isso nasceu “A Lira do Povo”. Primeiro como um espetáculo (não aquele do festival de músicas caipiras, mas o segundo, já com o título dado pelo meu amigo Hermínio), dividido em três suítes representadas pelo trígono que sempre me interessou (sertão>mar>cidade) e agora como um disco, um álbum.

Sobre o espetáculo intitulado “A Lira do Povo”, que pariu esse disco eu disse: “este espetáculo não é um retrato do Brasil. Também não é um recorte da memória afetiva do povo brasileiro ou a projeção de um país ideal ou não”. “A Lira do Povo” nasce da vontade de fazer sentir o personagem que somos nós, utilizando dos recursos estéticos que dispomos: som, luz, o teatro, cheiros e sentidos. Sendo a canção popular brasileira, de João Pernambuco a Kiko Dinucci, o principal material utilizado.

Não poderia ser outra música, de outro país ou povo, pois queremos evocar uma história de um homem brasileiro, que pode acidentalmente ser real, mas que por nós, artistas, foi inventado. Inventado como qualquer folclore, qualquer mito.

O que era para ser uma apresentação de músicas interioranas, criou asas e transformou-se num apanhado de signos, numa festa, numa dança do povo, num suspiro, num grito também.

Foi sabendo dessas coisas que o meu amigo Hermínio Bello de Carvalho, compositor dos grandes, batizou essa apresentação e tudo o que nasce dela, com título semelhante a um que já havia usado em seus trabalhos, que são sempre grandes estudos sobre o Brasil. O que me fez gostar ainda mais do título. A ideia de viver uma história no palco através do trígono “sertão > mar > cidade” não me sai da cabeça há muito tempo.

Uma frase de João Cabral de Mello Neto me atiçou lá atrás: “[…] ambidestro do seco e do úmido, como em geral os recifenses”. Essa imagem do povo que teve que sair do sertão para viver no litoral, fundando uma capital que tem tamanho de metrópole e jeito de interior me tomou desde então.

Nos meus escritos, há quase cinco anos, venho, sem saber, elaborando as direções e caminhos para a condução deste espetáculo, elegendo canções e parceiros possíveis de dividir esse sonho que agora se torna mais que real: irreal na sua plenitude.

Após quase trinta ensaios, testes de músicos capazes de encontrar os sons que gostaria de ouvir, horas de estúdio, anos de pesquisa e seleção de repertório, chego ao resultado final dessa jornada, com a alegria de dever cumprido e com certa timidez por contar tanto de mim, quando só queria inventar um mito brasileiro contemporâneo.

“A Lira do Povo” é o novo álbum do artista Ayrton Montarroyos, disponível em todas as plataformas digitais pela gravadora Kuarup, com participação especial de Alaíde Costa nas faixas “A Estrada do Sertão” e “Gas Neon”.

Ficha Técnica

Direção artístico-musical: AYRTON MONTARROYOS
Produção, percussão, violão, baixo elétrico, sample, coro, synth e arranjos: ARQUÉTIPO RAFA
Produção executiva: THIAGO MARQUES LUIZ
Violões, coro e arranjos: RODRIGO CAMPOS
Flautas, coros, percussão e arranjos: ARIANE RODRIGUES
Coro: RHAISSA BITTAR, MARI TAVARES E TATIANA BURG
Concepção, roteiro, cenário, pesquisa e arranjos: AYRTON MONTARROYOS
Produção do cenário: NILTON ARAÚJO
Técnico de luz: CRISTINA SOUTO
Técnico de som (PA): BORIS TORQUATTO
Técnico de som (monitor): JOÃO CARLOS
Figurino: THICO FERRAZ
Produção executiva: GUETE OLIVEIRA
Agenciamento: THIAGO MARQUES LUIZ
Assessoria de imprensa: PAULO HENRIQUE DE MOURA
Motorista: CELSO LOPES
Maquiadora: RAFA PIRES
Cabelo: ERON ARAÚJO
Fotos do disco: LUAN CARDOSO
Fotos do show: MURILO ALVESSO
Capa do disco: RAUL LUNA

Mixado e masterizado por Martin Scian (AR)
Gravado no estúdio Trampolim (SP)
Lançado pela gravadora Kuarup
Título dado por Hermínio Bello de Carvalho

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Matraca Cultural

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