O novo normal e as barreiras sociais para o acesso à cultura Antonio Saturnino setembro 18, 2020 REPORTAGEM Baixa qualidade de conexão, falta de dispositivos móveis, altos custos dos pacotes de dados e, em alguns casos, a necessidade do uso de um carro excluem população das periferias dos espetáculos durante a pandemia Com o fechamento dos espaços culturais, decorrente das restrições do distanciamento social determinado para evitar a disseminação do coronavírus, o setor cultural encontrou novas formas de levar arte para a população. Artistas passaram a realizar apresentações online, por meio de lives, e pelo sistema de drive-in. Mesmo que esses formatos permitam que as pessoas tenham acesso seguro a cultura e entretenimento e gerado renda para os trabalhadores do setor, inevitavelmente colocou novas barreiras para aqueles que vivem nas periferias e evidenciou a falta de incentivo e de projetos que contemplem artistas independentes. Profissionais do setor apontam a falta de um ministério que, de fato, represente a classe artística e de representantes que lutem pelo setor e pela democratização do acesso à cultura. “Nós não temos representatividade nenhuma! Temos uma Secretaria Especial de Cultura muito indiferente, despreocupada com o artista independente, que também é artista. A periferia não é assistida de perto, não existe apoio para o desenvolvimento da arte que eclode nas comunidades. Precisamos de pessoas com este engajamento político, até mesmo profissionais do setor cultural, com um olhar mais amplo, panorâmica para as demandas da cidade, do estado e das inúmeras pessoas e artistas desassistidos. Muitos estão atravessando situações difíceis para ter condições básicas de vida”, comenta Fábio Nunes, artista e autor do livro Manual Prático para Músico de Bares e Restaurantes, obra que tem como uma de suas nuances o questionamento sobre como um músico sobrevive ao “novo normal”. Altos valores e baixa qualidade e oferta de serviço restringem acesso da periferia à cultura em ambiente virtual O formato de apresentações online restringe o acesso à produção cultural para a população que vive nas regiões periféricas dos centros urbanos e em áreas rurais, pois mesmo com a expansão da conectividade nos últimos anos, ela ainda não é acessível para todos. De acordo com o levantamento TIC Domicílios 2019, um em cada quatro brasileiros, o que corresponde a 47 milhões de cidadãos, não utiliza a internet. A mesma pesquisa revelou que 28% das residências, o equivalente a 20 milhões de lares não estão conectados. Das pessoas das classes D e E já conectadas já inseridas no mundo digital, 85% utilizam a internet só pelo celular e com pacotes limitados. De acordo com Vânia Catarino, presidente interina da Obras Recreativas, Profissionais, Artísticas e Sociais (ORPAS), Organização da Sociedade Civil (OSC) que atua para resgatar crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social, a restrição financeira é um grande entrave para os moradores das periferias assistirem apresentações online. “O acesso à cultura já era algo difícil para a galera da quebrada e o formato virtual é totalmente excludente. As famílias não conseguem ter um celular ou outros dispositivos para todos os membros, devido à limitação financeira. Além disso, temos a dificuldade tecnológica de aparelhos descontinuados com nível baixo de processamento e a falta de aprendizado de tecnologia da informação no ensino básico, por isso temos menos possibilidades de acesso”, comenta. A renda baixa, associada à oferta limitada de serviço, piora o cenário. Representantes de organizações que atuam nas periferias também reclamam da qualidade da conexão nessas regiões. “A conectividade nas comunidades não é boa, é inconstante e muitas pessoas não podem pagar. É como se existissem dois ‘Brasis’: um que possui internet de qualidade para fazer o home office, assistir as lives e fazer todas as atividades necessárias durante a pandemia, e outro que passa dificuldade, não tem acesso ao mundo virtual e precisa se reinventar todos os dias durante a crise do coronavírus. Não podemos nos acostumar com uma situação que se coloca um ‘novo normal’, sendo que não temos essa situação de normalidade nas favelas”, argumenta Gilson Rodrigues, coordenador Nacional do G10 Favela. Segundo a União Internacional de Telecomunicações, o número ideal de acessos por antena é de até 1.500. De acordo com associações do setor, na periferia de São Paulo essa média pode chegar ao pico de 18 mil. “A qualidade é baixa, o que dificulta muito. São muitas pessoas usando o mesmo sinal. Tivemos relatos onde famílias inteiras compartilham apenas um dispositivo, isso quando têm. Os entraves, muitas vezes, são físicos, de não se conseguir passar o cabeamento, pois não tem registro dos imóveis para fazer toda a parte burocrática da instalação. Outro fator diz respeito à viabilidade econômica, com muitos lugares afastados e, infelizmente, as empresas não dão a devida atenção”, afirma Arthur Igreja, professor da FGV e especialista em Tecnologia e Inovação. Nichollas Alem, do Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes, completa questões sociais importantes como caminho necessário para estimular o consumo de arte: “Não podemos nos esquecer que o acesso à cultura está intimamente relacionado ao sujeito ter alimentação, transporte e outras condições que o permitam fruir aquele bem ou serviço cultural” “É um tiro no pé não nos enxergar como possíveis consumidores. Somos uma população enorme e muito consumista. Precisam criar plataformas digitais mais acessíveis e conteúdos interessantes que mostrem a cara da favela, a nossa moda, enfim coisas que nos representem”, finaliza Christiane Teixeira Mendes, presidente da Associação Núcleo de Educação Comunitária do Coroadinho, do Maranhão. Plateia motorizada O drive-in, um modelo muito popular nas décadas de 1970 e 1980, retornou durante a pandemia como alternativa para apresentações culturais. Nesse formato, o público assiste aos espetáculos de dentro do carro, geralmente com limitação de quatro pessoas por veículo, e o áudio é conectado ao sistema de som. Originalmente era utilizado apenas para a reprodução de filmes, mas durante a pandemia também foi adotado para exposições, shows de música, stand-up, entre outros. O modelo possui uma barreira muito nítida para a população que vive nas periferias: a necessidade de possuir um automóvel para apreciar os espetáculos. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 49,2% dos domicílios brasileiros possuíam carros em 2019. Ou seja, metade dos lares não têm como participar de um drive-in. “A maioria das pessoas nas comunidades não têm carros e, quando possuem, passam por dificuldades para utilizá-lo, por conta dos altos valores do combustível, dispor de veículos antigos e outros empecilhos. Na quebrada o uso do automóvel é limitado para as necessidades básicas como ir a hospitais, fazer compras, etc.”, ressalta Vânia Catarino. Nesse ponto também é necessário considerar que, atualmente, muitas pessoas optam por não ter carro, pois preferem usar aplicativos de transporte. Um levantamento do Global Automotive Consumer Study: Future of Automotive Technologies, realizado em 17 países, 62% do jovens das gerações Y e Z consideram dispensável a compra de um automóvel. No recorte feito com brasileiros, 55% refutam a necessidade do veículo. Em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, ao ser questionada sobre a probabilidade da realização de show no formato, a cantora Pabllo Vittar comentou: “Eu acordo de manhã sabendo que ainda não tem vacina e é muito triste ver que o governo também não faz quase nada pela população que mais precisa. Então, como eu vou subir num palco pra drive-in? Primeiramente, para isso a pessoa tem que ter carro. Quem tem carro no Brasil? Não tem como eu subir num palco sabendo que tem um monte de gente que não está nem podendo trabalhar. Formatos só beneficiam os artistas midiáticos Tanto o meio online quanto os drive-ins beneficiam apenas os artistas que estão na mídia. O apoio de marca em lives ou a escolha dos contratados para shows direcionados a plateias motorizadas são estratégias de marketing, não um apoio ao setor cultural. Ainda que permita aos artistas de diferentes manifestações culturais utilizar as plataformas digitais para mostrar a sua arte, e que muitas pessoas das equipes técnicas e de apoio tenham renda, o formato mostra a diferença de oportunidades entre os que são independentes e os que estão em evidência. Os artistas alternativos batalham por audiência na internet com aqueles que arrastam uma multidão de fãs e sequer são cotados para subir no palco de apresentações em drive-ins. Muitos dependem da colaboração virtual durante o período de reclusão. “Esses modelos evidenciam as disparidades, escancaram a miséria, eclodem as diferenças de classes no nosso país. Se tratando do âmbito musical, se estampou um cenário caótico. Os músicos independentes não têm patrocínio ou apoio de nenhum sindicato, nem mesmo da Ordem dos Músicos do Brasil – OMB – (durante a pandemia eu não recebi nenhuma carta, e-mail ou telefonema). Muitos não possuem trabalho autoral para poder fazer apresentações no YouTube, a maioria não tem a quantidade suficiente de seguidores para fazer suas lives. Ou seja, qual oportunidade que este cenário gerou para que um músico independente pudesse trabalhar para, ao menos, suprir suas necessidades básicas? Nenhuma!”, indagou Fábio Nunes. Ele também destacou que este é o momento de buscar formatos inclusivos de cultura, que beneficiem também artistas independentes e que democratizem o acesso à arte. “Seria importantíssimo pensar no coletivo, promover o novo, dar oportunidade e tornar os veículos, tanto rádio como internet, democráticos. Já pensou se as emissoras de rádio acabassem com o ‘jabá’ e promovessem novos artistas? O rádio ainda é muito forte, mas o rádio se corrompeu a muito tempo e só toca o que gera lucro. O artista gasta o que não tem para produzir o seu trabalho e, quando passa por esse martírio, se depara com a máfia da divulgação que se encontra nos veículos de comunicação”, completa. Iniciativas e números positivos Por meio de uma parceria com o Arena Estaiadas Drive-in, a Localiza Hertz disponibiliza gratuitamente veículos no local dos espetáculos, permitindo que o público utilize carros da frota da locadora já disponíveis nos espaços para assistir às sessões, não sendo mais necessário possuir um carro para viver a experiência. “A parceria com a Localiza Hertz nos permitiu desenhar uma ação inclusiva para esse formato redescoberto durante a pandemia e importante para o setor de entretenimento mundial. Além de iniciativas seguras, precisamos cada vez mais criar projetos divertidos, criativos e democráticos”, destaca Bob Dannenberg, sócio e um dos idealizadores do Arena Estaiada Drive-In. No último dia 13, a organização do drive-in realizou uma sessão exclusiva de Pokémon: Detetive Pikachu para cerca de 40 crianças de diversas idades, atendidas pelas instituições Ceariba Mirim e CUFA Paraisópolis. “Encontramos no drive-in uma opção segura para mantermos o entretenimento vivo, e ficamos muito felizes em proporcionar um momento descontraído para essas crianças, principalmente diante do cenário que vivemos. Esperamos que essa seja a primeira de muitas sessões beneficentes”, completa Dannenberg. Geração de trabalho O formato drive-in, devido ao porte necessário para a realização dos espetáculos, empregou milhares de profissionais do setor, que estavam totalmente sem renda durante a pandemias. Não há levantamentos oficiais com o número de pessoas empregadas, porém a reportagem do Matraca Cultural teve acesso aos dados do Drive-In Stage, que ajudam a dar uma dimensão do volume de empregos gerados. O evento já empregou quase mil trabalhadores, entre staff, técnicos de som e de luz, montadores, segurança, limpeza, bombeiros, produtores, entre outros. Leave a Reply Cancel ReplyYour email address will not be published.CommentName* Email* Website