“O povo quer se ver nas telas e se reconhecer naquilo que consome” Antonio Saturnino dezembro 18, 2018 ENTREVISTA Conheça Kairo, o curta-metragem premiado no Festival de Gramado de 2018 e que retrata a história da periferia contada por quem vive nela A estética e histórias da periferia tem atraído muitos cineastas, mas muitas vezes falta o olhar de quem vive essa realidade para tornar os enredos menos pejorativos. Por isso, hoje o Matraca Cultural apresenta mais uma grande conquista, vindo diretamente da periferia e feito por quem vivencia essas histórias todos os dias. A produção Kairo estreou este ano no Festival de Cinema de Gramado, onde Fábio Rodrigo, diretor e roteirista do curta, recebeu prêmio Kikito de Melhor Direção na categoria curta-metragem. O filme também foi selecionado para a 19° Retrospectiva do Cinema Brasileiro, mostra que reúne os melhores curtas e longas metragens lançados entre novembro de 2017 e outubro de 2018. Filmado na periferia de São Paulo, a obra conta a história da assistente social Sônia, que vai até uma escola de um bairro periférico de São Paulo para dar uma notícia difícil a um garoto de nove anos. O elenco reúne nomes como Vaneza Oliveira, Samuel de Assis e Pedro Guilherme, todos no ar com a segunda temporada da série 3%, da Netflix, além de Fernanda Viacava e Jane Mara. Representante de uma nova geração de cineastas negros brasileiros, Fábio usa sua vivência para contar histórias que se passam na periferia. Já dirigiu, ao lado de Caroline Neves, o filme Lúcida – Melhor curta-metragem do festival de Gramado pelo júri da crítica em 2016. Conversamos com o Fábio sobre o filme e sobre a representatividade das periferias nas telas do cinema. Matraca Cultural: Como surgiu a ideia do roteiro de Kairo? Fábio Rodrigo: No bairro da Vila Ede, onde eu vivi minha vida toda, conheci um cara que se chamava Caio. A gente conversava vendo jogos de futsal na quadra do bairro e ele era um cara com inteligência acima da média e muito engraçado. Gente boa mesmo! Mas ele tinha envolvimento com a vida do crime, era temido até pelos vizinhos e conhecido como um cara violento. Eu, que só encontrava ele ali, não conseguia entender o motivo. A gente já ria das situações de racismo que sofremos durante o tempo de escola e um dia ele me disse que perdeu o irmão e o pai assassinados. O mais incrível é que os garotos da terceira série usavam esse episódio para humilhá-lo ainda mais. A morte de uma família negra era piada no meio das crianças. Isso me fez pensar em que momento ele, que ali tinha seus 20 anos, tinha se tornado um cara temido e o que o teria tirado de uma sala de aula para esse tipo de vida. O Kairo é uma fabulação que eu imaginei para esse momento crítico na vida de um homem negro e periférico que recebe a notícia traumática da morte da família. MC: Você trabalhou com um elenco de peso no curta. Qual foi seu critério de seleção? Fábio: Eram pessoas que eu já admirava o trabalho. A Vaneza é conhecida mundialmente, mas o nosso país sempre demora a reconhecer o talento das suas atrizes negras. Eu escrevi para um elenco preto, já tinha visto algumas coisas do Samuel de Assis e via nele o encaixe perfeito. Fernanda Viacava era sonho antigo também. Ela atua magistralmente, faz isso como bebe água, e a conheci pessoalmente na minha primeira ida a Gramado. A surpresa foi o Pedro Guilherme que foi o último garoto de um casting com dezenas de meninos e me chamou muito a atenção pela naturalidade. Devo agradecimento aos nossos produtores Jorge Guedes e Eduarda Galvão, junto da Produtora Super Filmes, que ligaram as pontas. Foi uma experiência incrível. MC: Para sair do papel, Kairo utilizou recursos de leis de incentivo. Você acha possível fazer cinema no Brasil sem esse tipo de apoio? Fábio: Eu sempre agradeço a SP Cine que abriu um edital inclusivo que contemplava mulheres, diretores negros, deficientes físicos e indígenas. Atitude política corajosa no país em que vivemos. Ainda é pouco, a luta por políticas afirmativas no audiovisual é intensa e se arrasta por anos, governo a governo. Nesses últimos anos sofremos alguns retrocessos significativos e estamos num momento altamente difícil para trabalhar com cultura em qualquer campo. Eu fiz o “Lúcida” em parceria com a minha esposa, Caroline Neves, sem grana nenhuma, o filme foi premiado e fez linda carreira aqui e no exterior, então não posso dizer que a lei de incentivo é o único caminho. Mas acredito que um país que não investe em cultura vai para o buraco e estamos à beira. Então, alerto os novos cineastas, não dependam só disso, se nosso novo governo fechar caminhos, façam o que vocês fazem de melhor: criem! Derrotem as dificuldades com criatividade. MC Por que você optou por retratar e contar as histórias da periferia em seus trabalhos? Fábio: No cinema brasileiro, há pouquíssimo tempo, a gente mal tinha referência de histórias periféricas que não fossem retratando o crime ou a fome. Eu cresci assistindo filmes da sessão da tarde e tava na cara que os meninos da minha escola não eram atletas se engalfinhando por popularidade, andando com os carros dos pais e se esbaldando em festas. Então de onde sairiam essas histórias? Aquela não era a minha realidade. Foi um processo de achar minha personalidade fazendo cinema. Eu sempre fui do Rap e o Hip Hop foi quem me deu noção da minha realidade em termos artísticos. A partir daí foi entender a linguagem, achar minha maneira, respeitar quem veio antes: Jeferson De, André Novais Oliveira, Gabriel Martins entre outros, que já estavam, cada um o seu modo, tentando falar das periferias no cinema, vendo ela de dentro. MC: Você acha que a abordagem que se dá às periferias no cinema ainda é muito pejorativa e/ou reforça estereótipos preconceituosos? Fábio: Em sua maioria o cinema brasileiro que está nas salas comerciais, e por isso é mais conhecido do grande público, ainda segue com esse perfil de abordagem. Nosso cinema aos poucos vai deixando de ser uma arte feita somente por homens brancos com o poder de falar sobre o que querem da forma que acreditam. O espectador também nota o preconceito nos produtos audiovisuais que assistem, mas muitas vezes não tem noção que há mais coisas sendo feitas. Há uma geração forte surgindo, já há uma mudança que a gente espera que seja reconhecida e fico feliz por fazer parte disso. É um momento histórico. Olhem as premiações no Festival de Gramado e Brasília esse ano, procurem essas pessoas, vejam seus filmes. Procurem saber mais sobre o Vinicius Silva, o Marco Antônio Pereira, os Irmãos Carvalho, a Safira Moreira, Carol Rodrigues, Renata Martins, a Produtora Filmes de Plástico e tantos outros. MC: Os seus trabalhos contam histórias que você vivenciou na sua infância e/ou adolescência?Fábio: Sim, meus filmes, até aqui, falam sobre mim, sobre o lugar de onde eu vim, sobre coisas que passei e que vi. Porém, sou um roteirista e diretor profissional. Sou capaz de escrever e dirigir outras coisas também e o reconhecimento do meu trabalho com prêmios e tudo mais, talvez me dê essa validação. Até aqui tenho jogado em casa e provado que estou preparado. MC: Qual a importância de falar sobre a realidade das periferias no cinema? Fábio: O preconceito e o ponto de vista de quem está de fora não só exclui pessoas, ele desumaniza. O homem hétero retrata o gay a partir do olhar dele, o homem branco retrata o negro até onde ele pesquisa ou conhece e assim por diante. Tem se explicado tanto a questão do lugar de fala que às vezes fica repetitivo, mas as pessoas da periferia, assim como todas as camadas da sociedade que eu citei notam quando o cara criou um personagem para retratar uma realidade que ele quer mostrar. Usar um ser humano para mostrar uma realidade social me soa estranho. Cada um tem sua individualidade e só quem vive pode falar com propriedade. Então só tento dizer: hei, bacana, quem mora na periferia tá cansado da sua “caricatura” de favelado. MC: Como você vê a nova geração das periferias e o papel dela para a valorização como seres humanos da população das periferias? Fábio: A nova geração de cineastas de periferia que estão alcançando um lugar de destaque hoje trazem essa voz, esse potencial de se comunicar falando de coisas tão nossas e de uma forma bonita, com qualidade. Não é só discurso, esses filmes são vistos mundo afora. A mudança passa por esse caminho, eu não falo mais da “senhorinha da periferia”, como nosso cinema fez muito. Hoje eu falo da minha mãe, consegue ver a diferença? Eu mostro quem eu amo, trato essa personagem com carinho e ela se torna um ser humano na tela, toca as pessoas, não está ali pra mostrar “a dor da senhorinha da periferia”, está ali mostrando sim as dificuldades de um povo, que são reais, mas essa pessoa é muito mais que uma peça no quebra-cabeças de um filme. Isso vai ser sentido pelo público. Chega de empregadas sem alma, de bandidos negros criados para tomarem o tiro e de gays que só fazem as pessoas rirem. Eu quero mais. Essas pessoas, na vida real, são muito mais. MC: Como você enxerga o embranquecimento nas produções audiovisuais? E a não valorização de artistas de periferias em produções que abordam o tema? Fábio: Eu vejo esse audiovisual predominantemente branco como o status quo. O espectador nota que a Bahia da novela só tem pessoas brancas, mas assiste. Eles vão continuar tratando a vida de pessoas de forma pejorativa ou sem qualquer noção da realidade do outro, até que alguém aponte que está errado . É louco! É um olhar viciado, acostumado com isso, mas alguns estão notando que cabe questionamento e é aí que a gente entra, fazendo diferente do lado de cá, sem os milhões, ainda, mas com esse olhar. Então, quanto mais as pessoas questionarem, mais aqueles que detém o poder decisório na grande mídia vão precisar do que nós temos de vivência. O povo quer se ver nas telas e se reconhecer naquilo que consome. O cinema e o audiovisual tem um grande poder de autovalorização para as pessoas negras e de periferia, sempre tão excluídas. Acredito que isso fará a diferença num futuro próximo. Leave a Reply Cancel ReplyYour email address will not be published.CommentName* Email* Website