O papel da cultura para a naturalização das pessoas trans na sociedade Antonio Saturnino julho 1, 2021 REPORTAGEM A visibilidade trans e a representação positiva da transexualidade ajudam a educar a população Em 2020, pelo 12° ano consecutivo, o Brasil foi o país que mais matou pessoas trans no mundo. De acordo com o último dossiê Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), no ano passado foram registrados 175 casos de homicídios motivados por transfobia. Isso representa uma alta de 41% em relação ao ano anterior, quando ocorreram 124 assassinatos. Preto Téo, poeta, ator e produtor cultural De acordo com o produtor cultural Preto Téo, a cultura pode ajudar a mudar esse cenário. Para ele, a visibilidade de pessoas trans e a representação positiva da transexualidade nas produções culturais pode contribuir para reduzir os casos de violência motivados pela transfobia. “A nossa tomada nos espaços midiáticos de grande circulação pode influenciar a visão da sociedade sobre os nossos corpos enquanto humanos, simplesmente tão humanos quanto todas as outras pessoas. Também temos pais e mães, familiares, filhes, crenças etc. Além da dor, denúncias e as pautas da ‘diversidade’ que ainda nos rodeiam, temos potencialidades, talentos, sabedorias e muito mais para compartilhar. O simples reconhecimento da nossa humanidade pode minguar os movimentos de violência”, destaca Théo, que também é poeta e ator. “Precisamos visibilizar positivamente essa população, que é tão estigmatizada. Esse é um dever das produções culturais, principalmente as de maior alcance. Não queremos dizer que toda a comunidade trans é ‘santa’, afinal, como em qualquer outro grupo social, há pessoas de boa e má índole. Porém, o lado negativo já está tão massificado na sociedade cis heteronormativa e, por isso, é necessário mostrar muito mais a positividade”, afirma Keila Simpson, presidenta da Antra. Eva Treva, cantora / Foto: Letícia Aoki Para a cantora Eva Treva, ver cantoras como a Liniker, Raquel e Assucena, do grupo As Baías, e Linn da Quebrada, permitiu que ela visse possibilidades de existir dentro da transgeneridade para além da visão marginalizada da sociedade. “Eu tinha muito medo de ser agredida na rua, de ser rejeitada pelos amigos, não conseguir emprego, não ser aceita pela minha família e ser expulsa de casa. As pessoas trans que eu via estavam em situação de rua ou na prostituição e aquele parecia ser o único lugar possível para uma trans. Se não fosse por elas, não sei se eu teria o mesmo olhar sobre a transição e, talvez, não tivesse coragem de fazê-la. E, caso eu fizesse, teria sido muito mais difícil”, comenta a cantora Eva. Porém, o número de pessoas trans em elencos de filmes e telenovelas, line-ups de festivais, grupos de dança etc, ainda é muito baixo. Para representar um personagem cisgênero, o/a artista precisa mostrar passabilidade cis e, mesmo que o faça, as oportunidades são poucas. Para interpretar um/uma trans, muitas produções dão os papéis a pessoas cis, prática conhecida como transfake. “Ser uma pessoa trans no meio cultural não fecha portas, porque elas nunca foram abertas. Precisamos sempre mostrar uma passabilidade cis e fazer nossa cultura parecer cis, mas nós somos trans e temos orgulho disso! Quando nos classificam como ‘artistas trans’, o que querem é nos colocar em um lugar menor e impor limites. Nós somos artistas e pessoas trans, nosso fazer artístico é muito maior”, destaca a multiartista Valléria Barcellos. Valéria Barcellos, multiartistaFoto: Silas Lima A cineasta Júlia Katherine, primeira cineasta trans a entrar no circuito comercial como diretora de um filme com o curta-metragem Tea for Two (2019), defende que pessoas trans devem ser inseridas em diferentes áreas da produção cultural. “Precisamos construir uma representatividade que, de fato, seja plural. Além de pessoas trans na frente das câmeras, queremos que elas estejam também por trás delas. Estamos nessa conversa já tem um tempo, agora é preciso que nos escutem. Já fazemos muito, quem precisa fazer algo são eles”. Julia Katherine, cineasta Para Júlia, a cultura deve ser utilizada para garantir às pessoas trans o acesso ao mercado de trabalho e ampliar o debate sobre o preconceito. “Precisamos conversar sobre transfobia, empregabilidade e a inserção do corpo trans na sociedade heteronormativa cisgênera, e a cultura é uma boa ferramenta para abrirmos esse diálogo. Só temos espaço na mídia em junho, quando estamos comemorando Mês do Orgulho, mas no resto do ano temos que ficar dizendo que estamos aqui e pedindo para que nos escutem e nos vejam”. Uma necessidade latente da população trans, que as diversas pontas da indústria cultural podem contribuir para a mudança de cenário, é a questão da empregabilidade. De acordo com o Mapeamento das Pessoas Trans no município de São Paulo, de janeiro de 2021, 83% das travestis e mulheres trans já se prostituíram, ou ainda o fazem, como estratégia de sobrevivência. Muitas se expõem aos riscos das ruas, por falta de oportunidades no mercado de trabalho. “Geralmente as barreiras aparecem durante o processo de seleção, quando somos dispensadas sem qualquer justificativa plausível. Quando conseguimos ser contratadas, nos deparamos com um ambiente de trabalho nos quais os gestores não estão preparados para lidar com a transexualidade. Há casos de superiores que nos pedem para esconder os peitos quando vamos falar com clientes. Em geral, somos dispensadas no período de experiência”, comenta Hannah Santos. Conviver no ambiente escolar também é algo desafiador, sobremaneira, para pessoas trans. Existem poucos dados relacionados à evasão escolar de pessoas trans, mas, de acordo com pesquisa da Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil, 82% dessa população, com idade entre 14 e 18 anos, abandonaram os estudos em 2017. “A sociedade naturaliza o abandono escolar das mulheres trans pois, a grosso modo, ela é vista como prostituta. Consideram que o lugar delas é na rua se prostituindo e correndo todos os riscos, por isso acham normal que elas não estejam na escola,” ressalta Juliana Queiroz Guariniello, professora e mestra em Ciências Humanas Juliana Queiroz Guariniello, professora e mestra em Ciências Humanas Entre os principais motivos para a desistência dos estudos, estão o preconceito e as violências física e verbal. A professora destaca outros dois pontos: “Muitas abandonam a escola devido ao uso do banheiro e do nome social, que são questões mínimas dos direitos humanos. Elas não podem usar o banheiro masculino, pois usam roupas femininas e, no feminino, não são aceitas, pois não são vistas como mulheres. Isso evidencia a incapacidade da escola em lidar com a diferença e passa uma mensagem para essa pessoa de que ela não é bem-vinda. Isso é um assassinato em vida!”. Ela finaliza ressaltando o papel transformador da cultura. “A visibilidade trans na cultura é importante para naturalizar a transgeneridade e a representação positiva nas produções artísticas pode contribuir muito para tirar essas pessoas da marginalização”. A busca pela liberdade Preto Téo Preto Téo é poeta, produtor cultural, ator e barbeiro. Totalmente autônomo e independente, integra a organização do Slam Marginália, batalha de poesias feita por e para pessoas trans e gênero dissidentes, onde atua como slammaster e produtor. Também integra a equipe do projeto de intervenção artística audiovisual “Okó: fragmentos de masculinidades transatlânticas” e a Produtora Itinerante Mafuá, coletividade de trabalhadores da cultura, focada no mapeamento e impulsionamento de artistas LGBTQIA+. Já no sexto ano desde sua percepção e aceitação enquanto pessoa transsexual, entende os riscos e consequências do uso de binders (compressores mamários que disfarçam o volume na silhueta) a longo prazo. Porém, a necessidade de disfarçar os seios é maior do que as dores e assaduras causadas por faixas e fitas, o desconforto da compressão do diafragma, desajuste da postura e os incômodos na coluna etc. Com o início da pandemia, Téo perdeu muitos contratos artísticos e deixou de trabalhar nos grandes eventos públicos das ruas de São Paulo. Sem convênio médico, em busca de saúde e qualidade de vida, sonha em remover os seios, porém o custo do procedimento está muito distante de suas possibilidades financeiras. Por isso, abriu um financiamento coletivo para a realização de sua mastectomia. “Sabe, com o corpo de hoje, ainda de seios grandes, evito correr por qualquer motivo que seja. Não vou na piscina nem de graça, sofro na praia, evito toques da minha companheira, odeio esbarrar nas coisas, escolho cada roupa avaliando centímetros de volume, uso compressores que me causam dors. Todo esse processo já dura anos e é bastante doloroso, angustiante e cansativo. A mastectomia é muito além de estética, é liberdade. Por isso, sim, simples assim. A sua contribuição alimenta a minha liberdade”, afirma o produtor cultural. Para ajudar o Preto Téo, acesse o link https://abacashi.com/p/mastecpretoteo Leave a Reply Cancel ReplyYour email address will not be published.CommentName* Email* Website