Estar à frente de uma luta contra o racismo, a desigualdade e as questões femininas, em um período marcado pela repressão política extremamente agressiva, não foi uma tarefa fácil. No entanto, Angela Davis se destaca como um dos maiores símbolos dessa resistência, atuando de forma incansável na defesa e promoção dos direitos humanos. Nascida em 26 de janeiro de 1944, aos 80 anos, Davis é uma figura emblemática, tema de livros, documentários e reportagens, e sua militância continua viva e especialmente relevante no Brasil.

Nesse contexto, o Matraca Cultural recomenda a biografia em quadrinhos Angela Davis, escrita pela italiana Mariapaola Pesce e ilustrada por Mel Zohar. A obra retrata, de maneira fluida, delicada e cuidadosa, a vida de Davis. Apresentada no formato “fumetti” (quadrinhos em italiano), a autora nos transporta para a década de 1970, fazendo-nos sentir como testemunhas de um período marcado por dor, perseguição, prisão e revolução. As ilustrações em tons pastéis evocam o passado e nos imergem na atmosfera daquele tempo. Diria até que, ao ler, nos tornamos parte do Partido dos Panteras Negras — grupo político em defesa dos direitos civis, do qual Angela Davis fez parte.

Contudo, essa leitura não se limita a revisitar o passado; ela nos convida a refletir sobre o presente. Infelizmente, ainda enfrentamos uma intolerância racial significativa, com agressões verbais e físicas acontecendo diariamente. E isso continua a acontecer nos dias de hoje. No entanto, a obra também traz uma mensagem de esperança e resistência.

Em entrevista ao Matraca Cultural com a autora Mariapaola Pesce, ela compartilha sua visão sobre a importância de figuras como Angela Davis e Marielle Franco para a história, e a necessidade de garantir que seus legados não sejam apagados.

Leia a entrevista completa abaixo:

Matraca Cultural: 20 de novembro é O Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, no Brasil. Para você, qual é a relevância da vida e obra de Angela Davis nos dias atuais, para o Brasil e o mundo.

Mariapaola Pesce: A grande lição que tirei da vida e das ações de Angela Davis é a sua profunda consciência, firme e sem inabalável, de que só se entendermos que o mundo proletário é único, sem cores, gêneros e hierarquias, então seremos, todos juntos, um corpo único, vigilante e livre. Ela compreende isso rapidamente, na própria pele, e assim que pode, coloca em prática tudo o que conhece e sabe para unir, fazer crescer, fazer compartilhar. Tornar a cultura acessível nas prisões para mulheres pobres, vítimas de abusos e violências, é um sinal forte. Ela, injustamente presa, pensa nas outras pessoas enquanto poderia pensar em si mesma… Acredito que isso, para o Brasil, para a Itália e para o mundo todo, é o que de mais poderoso pode nos comunicar.”

MC: Seu livro aborda temas importantes como racismo, justiça social, feminismo e resistência. Como você decidiu quais momentos ou aspectos da vida de Angela Davis deveriam ser priorizados, destacados e com qual intensidade?

MP: Li Autobiografia de um Revolucionário. Ele me manteve amarrada à cadeira por três dias. Aí reli, para ter certeza de que realmente entendi tudo o que essa grande mulher fez. Comecei daí, pelas muitas fotos que encontrei online, pelos artigos e entrevistas. E da cultura popular italiana: considere que um grupo musical, o Quartetto Cetra, que fazia música divertida e leve, dedicou-lhe uma canção com muito respeito durante o período sombrio e brutal da prisão. Imaginei que se fosse uma entrevista para a TV eu poderia focar em alguns momentos específicos, como se fosse uma história interrompida por flashbacks. É como se eu a tivesse entrevistado… Segui o fio de perguntas que lhe faria para entender como ela conseguia ser tão profunda, incansável e generosa.

MC: Podemos considerar sua obra como uma biografia em quadrinhos de Angela Davis? Quando escreveu, qual era seu sentimento e vontade com o trabalho?

MP: Sim, é realmente uma biografia em quadrinho. Nasceu como um desafio: o homem que hoje é meu sócio no ramo de agência literária atuava na época como meu agente. Um dia, enquanto caminhávamos, ele me perguntou se eu escreveria uma história em quadrinhos. E eu, que nunca tinha feito isso, respondi “sim, e também sei quem… Angela Davis!”  Eu estava calma, pensei que isso nunca iria acontecer,  mas em vez disso! Quando chegou a proposta da editora, TIVE QUE ABSOLUTAMENTE faça isso. Sempre foi um desafio: lidar com um gênero que eu amava, mas com o qual ainda não tinha me metido; fazer meu agente parecer bem; respeite os pensamentos de uma mulher extraordinária. Foi um período intenso e revigorante.

MC: O que mais te surpreendeu e emocionou enquanto mergulhava na história de Angela Davis?

MP: Você precisa saber que eu a escolhi porque tinha uma ideia estereotipada dela, distante da riqueza multifacetada de sua cultura e profundidade política. Descobrir, por exemplo, sua imensa cultura filosófica, sua capacidade de passar do trabalho no campo à redação de um artigo, o respeito sincero pelas pessoas e a profundidade de suas convicções foram um fluxo de descobertas e emoções contínuas, que me devolveram a confiança na possibilidade de as pessoas realmente fazerem a diferença.

MC: Você me surpreende positivamente ao abordar uma figura, mulher e ativista importantíssima para o Brasil, que foi Marielle Franco. O que você quis trazer com este quadro? Seria o quão presente ainda anos após a luta de Davis temos presente a intolerância, o racismo e o quanto o sistema ainda é falho?

MP: Infelizmente sim, Mari, infelizmente acredito que de vez em quando é preciso começar do zero, propor novamente o diálogo, chamar a atenção para aspectos que deveríamos poder dar como certos… e que ao contrário são esquecidos. Mulheres como Marielle Franco assumiram o testemunho de muitas outras, com coragem e determinação, e causaram problemas. Mas não serão esquecidas se ao menos falarmos delas nos livros, e as mantivermos vivas!

MC: Quais foram os principais desafios ao traduzir a trajetória de Angela Davis para o formato de quadrinhos?

MP: Respeitar as palavras da Ângela (cito suas afirmações verdadeiras sempre que posso) e sua forma de se expressar quando a faço falar com minhas próprias palavras, por exemplo. Deixei a Mel livre para criar suas próprias imagens, sem se sobrepor a todas as minhas descrições e contar de forma que fosse uma biografia que pudesse atingir homens e mulheres… porque eu não queria que fosse uma literatura apenas para mulheres!

MC: O formato de quadrinhos traz uma leveza visual, mas não simplifica questões complexas. Como você trabalhou em parceria com a Mel Zohar para equilibrar o impacto visual e a profundidade da narrativa?

MP: Mel é uma garota de grande profundidade, culta e cheia de curiosidade. Trabalhar com ela foi fácil, porque ela não só desenha, mas também é fotógrafa, por isso enquadramentos, closes e imagens em perspectiva subjetiva são para ela o pão de cada dia. Ela imediatamente fez um esboço de Angela que eu adorei. Trocamos muitos e-mails, ela fez propostas interessantes. Hoje estamos fazendo um novo livro sobre outra grande mulher, pois trabalhamos muito bem juntas!

Serviço:
Onde comprar: COMIX Book

About The Author

Mariana Bernun

Jornalista por formação, surfista nas horas vagas (as poucas que sua vida agitada de publicitária lhe permite). Ama inventar palavras com múltiplos significados e consequentemente escrever. Aqui neste espaço, pretende compartilhar novidades culturais e quem sabe transformá-las em reações sensoriais!

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