Jogando bolinha de gude. Imagem: Ricardo Negro

Os artistas Ricardo Negro e Bonga Mac e o empreendedor Daniel Faria têm muito em comum. Moradores de regiões periféricas de São Paulo, todos enfrentaram dificuldades para conquistar seus objetivos. Hoje, eles utilizam da cultura para transformar, principalmente, a vida de pessoas que vivem nas periferias e desconstruir os olhares preconceituosos sobre crianças, jovens, pretos e muitos outros grupos que vivem nessas regiões. Suas histórias são inspiradoras e podem ser conferidas a seguir:

Desconstrução de preconceitos sobre as comunidades a partir do graffiti

O que seriam dos cinzas das cidades se não fossem as expressões artísticas que nos permitem ver muito além das aparências reais? Pois é, justamente, essa desconstrução imagética que o artista urbano Ricardo Alves da Silva Miranda, conhecido como Ricardo Negro, nos apresenta, ao retratar a vida das comunidades periféricas do Brasil por meio do graffiti. Para isso, ele utiliza de cores quentes em suas obras, a fim de exaltar a alegria e a vivacidade dos moradores periféricos que, apesar das lutas diárias, trazem sempre um sorriso estampado no rosto e estão dispostos a ajudar quem precisa, independente de suas dificuldades. 

Imagem: Divulgação

Graças a esse trabalho, o artista, morador do bairro do Grajaú desde pequeno, região periférica da Zona Sul de São Paulo, tornou-se conhecido nacional e internacionalmente. Ele conta que o interesse inicial pela pintura se deu graças ao seu pai, que trabalhava como fotógrafo, e possuía materiais como monóculo, fotos e câmera. “Eu gostava de manusear os monóculos e observar as pessoas por meio deles. Em seguida, passei a observar as pichações na rua, tentando decifrá-las e pensando nos motivos que levavam os artistas a criá-las”, afirma.

Sua primeira experiência com o graffiti se deu a convite do irmão para pintar um muro no Jardim Eliana, bairro localizado no distrito do Grajaú. “Fizemos o trabalho rapidamente, com medo de sermos pegos pela polícia ou pelo proprietário do imóvel. Aquilo tudo chamou a minha atenção. Depois, meu irmão parou de pintar e eu continuei com alguns amigos.” Negro também ressalta que, aos 15 anos, começou a fazer mais pinturas, com vários outros garotos, e passou a assinar seu nome nos trabalhos. “A partir daí foi surgindo o interesse cada vez maior pelo grafitti.” 

Vindo de uma realidade difícil, Negro considera a arte um alento para ele, pois lhe proporcionou outros caminhos e uma perspectiva diferente de mundo. E foi, justamente, o contato com o graffiti que lhe despertou o interesse em cursar uma faculdade de Arte. “No mundo acadêmico, eu fui descobrindo como era possível viver por meio dessa área. Porém, foi um processo difícil pois, no começo, eu não possuía uma bolsa universitária. Eu trabalhava como atendente de telemarketing para pagar meus estudos. Só para chegar ao centro, eu levava, aproximadamente, duas horas. Acordava às 5h da manhã e chegava em casa à meia noite. Várias vezes pensei em desistir”.

Mas, um ano e meio após ter entrado na faculdade, Negro conseguiu a bolsa de estudos. Então, ele pediu demissão da agência de telemarketing e começou a dar aulas de arte em uma ONG. No entanto, o que ele queria mesmo era se dedicar mais à pintura. “Eu fui conduzindo o processo do meu jeito. Comecei a preparar a exposição, aprendendo como era a venda de obras, o que era barato e o que era caro. No entanto, eu não vendia muito e, então, comecei a dar aulas em outra ONG. Num determinado período, eu tive que dar aulas em duas ONGS, com várias unidades. Cheguei a trabalhar em quatro escolas, todos os dias da semana.”

No momento em que começou a vender mais telas, o artista desenvolveu aquele que seria um dos seus principais trabalhos: a representação de casinhas coloridas que nos convidam a observar as favelas sob um prisma positivo e a nos desvencilharmos da visão tão negativa atribuída a elas. “A ideia nasceu num concurso de pintura da faculdade para pequenos formandos. Uma amiga minha chamada Raquel viu a minha dificuldade quanto à aquisição de materiais e me presenteou com três telas, para que eu as pintasse e participasse do concurso”. Assim que ele começou a pintá-las, manifestou a vontade de pintar mais, até montar uma exposição a respeito.

Periferia. Imagem: Ricardo Negro

Negro conta que, ao longo do processo, ele foi descobrindo a importância da cor em suas obras. “Eu me perguntava como poderia representar a felicidade das pessoas ao pintar as casinhas. Ao me questionar a respeito, a resposta que eu encontrei foi colorí-las. Talvez esse seja um sonho para o futuro: ver as casas da periferia coloridas.” Foi então que o artista descobriu como trabalhar e misturar as cores quentes em suas obras. 

No mesmo período, ele também começou a pintar personagens a partir de suas próprias memórias ou de cenas que via enquanto andava nas ruas. “Um dos exemplos é a tela de um menino soltando pipa perto de um lixão, baseada numa cena que eu presenciei e ficou marcada em minha memória. Outras obras são de lembranças da minha infância, como a tela de um menino brincando com um pião, algo que fiz muito quando era criança, entre várias outras.”

Sonho de Senna. Imagem: Divulgação

Ao longo de sua trajetória, o artista conquistou e vem conquistando diversas parcerias. Apenas em 2016, por exemplo, ele pintou dois murais para o Centro Educacional Infantil Luz e Lápis, projeto da empresa AES Eletropaulo, e teve três de suas pinturas estampadas nos chinelos Havaianas, cuja repercussão foi tamanha que chamou a atenção fora do Brasil. “Uma representante da Havaianas na Europa viu o sucesso do projeto e decidiu bancar minha viagem para alguns países europeus, com direito a intérprete, pois eu não falo inglês. Fui muito bem acolhido. Pessoas de oito países vieram falar comigo. Dei entrevistas, inclusive em um programa de TV alemã.” 

Atualmente, o artista também está produzindo esculturas a partir de vivências, viagens e reflexões realizadas por ele, que estão sendo enviadas para interessados do Brasil e do exterior. Assim, ele segue ajudando a desconstruir preconceitos sobre a realidade periférica brasileira. 

Imagem: Divulgação

Transformação de kombis novas e velhas em obras de arte 

Uma verdadeira galeria móvel de arte a céu aberto: é assim que podemos chamar as obras produzidas pelo artista urbano Donizete Lima, conhecido como Bonga Mac, por meio de seu projeto Kombozas, que surgiu no começo deste ano de 2021. A ideia inicial consistia em customizar, gratuitamente, algumas kombis, por meio do graffiti, independente de serem novas ou velhas. No entanto, o artista ampliou o projeto ao perceber a possibilidade de realizar uma ação sociocultural, que contemplasse todos aqueles que utilizam as peruas como instrumento de trabalho, seja para a coleta de resíduos sólidos, seja para o transporte e/ou serviços gerais. 

Imagem: @tamisanoli

À medida que seu trabalho foi se tornando mais conhecido na região onde reside, o município de Caieiras, pertencente à Grande São Paulo, Bonga passou a ser procurado por mais trabalhadores, como feirantes, serralheiros e diversos outros profissionais. Não demorou muito e, assim que perfis de instagram sobre kombis começaram a divulgar o projeto, o artista também passou a personalizar peruas, vindas de várias regiões do estado de São Paulo. Ele começou a atender, inclusive, pessoas que vivem em kombis, conhecidas como motor home e já foi procurado por moradores de outros estados também.

Para o grafiteiro, o objetivo do Kombozas vai além da revitalização das peruas, a fim de ressignificar, também, a vida de seus proprietários. “Trata-se de um presente para eles neste período de pandemia, de modo a iluminar a rotina desses indivíduos para que continuem atuando com seus serviços. O projeto também é um presente para mim, pois encontrei uma forma de continuar produzindo arte, já que, com a pandemia, eu não pude mais sair como antes, devido às minhas comorbidades e as de meu pai, que mora comigo”, conta o grafiteiro, que também é arte educador. 

Imagem: @thomasnasto

Embora a personalização dos veículos seja totalmente gratuita, muitos perueiros se sentiram tão agraciados com o trabalho do artista, que quiseram contribuir com o projeto financeiramente. Mas, ao invés de aceitar o recurso, Bonga resolveu mobilizá-los para o transporte de alimentos e entidades para famílias necessitadas de Caieiras e da capital paulista. 

A ideia surgiu a partir da Comunidade Cultural Quilombaque, organização sem fins lucrativos localizada no bairro de Perus, em São Paulo. Segundo Thaís Santos, cofundadora e coordenadora da instituição “o transporte era o limitante para ampliar o número de famílias atendidas na região, com cestas básicas e kits de higiene e limpeza obtidos através da campanha de apoio permanente da UNEAfro Brasil”. A partir daí, Bonga começou a atender outros grupos, como o Cobertor do Bem, entidade que distribui cobertores e cestas básicas em diversos locais de São Paulo, e Saful, time de várzea de Caieiras que arrecada alimentos para ajudar as pessoas necessitadas da região. 

De acordo com o arte educador, como as entidades possuem dificuldades no transporte de alimentos, os perueiros retiram os produtos em um ponto central de São Paulo ou de Caieiras para levá-los às instituições. No total, eles já transportaram dezenas de cestas básicas. No entanto, o artista ressalta que o número de alimentos arrecadados no momento ainda é pequeno. “Por isso, estamos analisando uma forma de incentivar os próprios perueiros, que tiverem condições, a colaborarem com arrecadações também”, completa Bonga. 

Imagem: Divulgação

O grafiteiro ressalta ainda, que tem o objetivo de ser conhecido, internacionalmente, como o artista com o maior número de kombis pintadas no mundo. Para isso, ele pretende atingir a marca de 50 veículos customizados (os dois lados) e produzir, a partir daí, 100 registros fotográficos de suas obras para publicação de um livro.

Antes do projeto Kombozas, Bonga já fez uma série de outros trabalhos artísticos no Brasil e no exterior. Seu estilo está presente em estados como São Paulo, Distrito Federal, Bahia, Mato Grosso, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Sergipe, Rio Grande do Sul, Paraná e Goiás, além de países como Chile, Canadá, França, Bélgica, Itália, Equador e Peru. 

Como arte educador, ele já desenvolveu uma série de projetos, incluindo atividades que incentivam a difusão da cultura hip hop, juntamente com crianças e adolescentes, por meio de oficinas, reuniões, debates e mostras. “A arte nasceu comigo. Ela é parte de mim. Eu coexisto com ela”, ressalta o artista, que atua com o graffiti desde os anos 90 e diz que sempre gostou de trabalhar com personagens, provocando um diálogo sobre o cenário urbano. “Trata-se de um rap pintado. Por ter relação com a cultura hip hop, sempre quis contestar, por meio da arte, utilizando o graffiti como instrumento de educação e transformação social.” 

Bonga também ressalta a relevância da cultura artística como forma de dar visibilidade ao próximo e como se sente bem em fazer isso com o seu trabalho: “O mundo necessita de mais amor, solidariedade e relações de troca. Não há presente maior do que contribuir para a felicidade de alguém. Eis o poder da arte!”, conclui.

Do quintal de casa para o mundo

Há aproximadamente 15 anos, o empreendedor Daniel Neves de Faria, conhecido como Daniel da ORPAS, estreava um projeto no quartinho do quintal de sua casa, onde sua mãe passava roupa, que transformaria a vida de milhares de crianças e jovens em situação de vulnerabilidade, sem que ele pudesse imaginar: a criação de uma ONG chamada ORPAS (Obras Recreativas, Profissionais, Artísticas e Sociais), voltada para iniciativas que tratam de questões étnicas, diversidade, cultura, educação, empreendedorismo e cidadania. 

Imagem: Divulgação

A ideia nasceu da vontade do fundador em oferecer melhores oportunidades para a população da região onde ele mora desde pequeno: o distrito do Jardim São Luís, periferia de São Paulo. Um lugar, segundo ele, marcado por muitas adversidades. “Na década de 90, por exemplo, eu me lembro que havia muitos assassinatos e vários negros morriam. A maioria deles em confronto com a polícia ou traficantes de outras regiões.” As estatísticas, inclusive, apontavam altos índices de mortalidade precoce entre os pretos, cujo destino estava quase sempre ligado ao tráfico de drogas e criminalidade.

Filho de metalúrgico e dona de casa, Faria ressalta que é um dos exemplos que contrariou os dados da época. “Eu tive a oportunidade de estudar em uma organização social conveniada ao Senai, onde fiz três cursos técnicos: um na área de eletricidade industrial, outro na área de computação e outro na área de computação avançada.”  Graças a essa experiência, o empreendedor percebeu que, por meio dos estudos, poderia conquistar melhores oportunidades para si e para as pessoas ao seu redor. 

A partir de então, Faria não parou mais de estudar: cursou escola técnica e fez graduação em administração na PUC, entre várias outras formações, totalizando sete cursos em faculdades, incluindo pós-graduação e mestrado. Ele conta que estudou muito para compreender como tornar a periferia em um lugar melhor para viver. Foi então que o empreendedor resolveu criar a ORPAS, transformando um pequeno quartinho em sua casa em uma sala de aula para receber 55 alunos interessados em aprender a tocar teclado, violão e bateria. Com o aumento das oficinas, o quintal do fundador ficou pequeno para receber tanta gente e, desde então, a organização foi se ampliando cada vez mais.

Atualmente, a ONG já impactou mais de 10 mil pessoas por meio de eventos e conta com uma série de projetos, incluindo internacionais. “Fundamos a ORPAS na Argentina, fomos para a Romênia, onde realizamos atividades em parceria com a União Europeia. Durante um ano, eu fiz mais de 50 viagens para 15 países diferentes, a fim de realizar projetos de impacto social.”

Imagem: Divulgação

Aqui no Brasil, destacam-se projetos como a manutenção de um banco comunitário, que permite a circulação de uma moeda social pelo distrito, além do programa de microcrédito e de incentivo a economia criativa; escola de talentos para crianças de 4 a 12 anos; programas para jovens empreendedores com 11 cursos profissionalizantes, como fotografia, comunicação, gestão de restaurantes e outros; Troféu Periferia Brasil, que reconhece iniciativas culturais e sociais em destaque pelo Brasil, entre inúmeros outros. 

Com a pandemia, muitas mudanças ocorreram, e a organização passou a atender as necessidades do momento. “Para mitigar os impactos da pandemia na comunidade, elaboramos algumas ações, entre elas: distribuição de cestas básicas com kits de higiene pessoal e produtos de limpeza; crédito emergencial e micro empréstimos para microempreendedores e autônomos, além das famílias da comunidade que tiveram suas rendas zeradas ; voluntários para fazer compras em mercados e farmácias para idosos ou pessoas acamadas que não tenham apoio da família e apoio às mulheres e crianças que estejam em situação de violência doméstica (orientação jurídica, psicológica, assistência para acessar a rede de proteção)”, relata Faria. 

No último ano de 2020, com o apoio de muitos colaboradores, a organização conseguiu mais de meio milhão de reais em recursos mobilizados, 130 toneladas de alimentos, beneficiando mais de 22 mil pessoas e atendendo mais de 5 mil famílias. Agora, a ORPAS se prepara para, gradativamente, voltar com seus cursos, como escola de talentos e de empreendedorismo, além de programas de atendimento psicológico, jurídico e orientação financeira à população de baixa renda, entre diversas outras ações. 

Imagem: Divulgação

Filho e neto de pretos e bisneto de escravos, Faria afirma que luta para não ser uma exceção no Brasil, a fim de que mais pessoas nascidas e criadas na periferia tenham acesso ao empreendedorismo, às universidades, aos cursos como ferramenta de promoção social de emancipação do nosso povo. “Nós sabemos que estamos vivendo um novo processo de escravidão no Brasil, mas, com educação e espírito empreendedor, conseguiremos quebrar essas correntes e termos a nossa liberdade tão lutada e almejada pelos nossos antepassados”, conclui.

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