Bienal do Livro 2019 | A era das transformações: de Monteiro Lobato à escola brasileira Matraca Cultural setembro 18, 2019 OPINIÃO Por Claudio Sassaki Nada escapa ao poder inexorável do tempo. Um dos temas debatidos na Bienal Internacional do Livro de 2019, no Rio de Janeiro, foi o viés racista na obra do autor do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Na mesa Relendo Monteiro Lobato, os autores Pedro Bandeira e Marisa Lajoto levaram para o Café Literário as questões que fizeram com que o escritor de uma das mais consagradas obras da literatura infantil passasse a ser relido à luz das concepções ideológicas contemporâneas. Ambos abordaram, ainda, as principais características da produção literária “lobatiana”: curiosidades da vida do escritor e a importância que ele teve para a formação de novos leitores no Brasil. No bate-papo, Bandeira assumiu o desafio de atualizar a obra de Lobato para o século XXI e Marisa é autora de uma biografia em primeira pessoa, a partir das cartas que ele escreveu. Os autores afirmaram que, embora adepto de pensamentos racistas, esse traço não estava presente nas publicações do escritor; não era um aspecto unívoco da obra dele. Alinhado às demandas atuais, parte da missão de Pedro Bandeira consistiu em eliminar as expressões racistas, atualizando os textos para jovens e crianças contemporâneas. Os xingamentos que Emília proferia contra Tia Anastácia não têm mais espaço nas novas edições da Editora Moderna, tampouco na sociedade brasileira. Mas, a linguagem, a genialidade e o humor de Lobato serão preservados. A movimentação editorial ocorre no momento no qual a obra passou ao domínio público, ou seja, os direitos autorais não pertencem mais exclusivamente aos descendentes, 70 anos após a morte do escritor. Como pai de quatro filhos e mestre em Educação pela Universidade de Stanford, tenho acompanhado a polêmica em torno dessas novas edições e do conteúdo da obra original. Em 2010, por exemplo, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) manteve a obra Caçadas de Pedrinho no Programa Nacional Biblioteca da Escola, desde que houvesse a advertência de condicionar o livro, no contexto de educação escolar, a professores com a devida compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil. Cabe ressaltar que a edição com uma adaptação crítica, similar à proposta de Pedro Bandeira, não é exatamente uma novidade na literatura. O quadrinho Tintim no Congo foi objeto de debates públicos na Europa e hoje conta com edições revisadas que eliminaram os resquícios do colonialismo belga. Antes, o conteúdo era repleto de estereótipos e preconceitos contra os africanos. Monteiro Lobato e Hegé (Georges Prosper Remi) nasceram, respectivamente, em 1882 e 1907. São resultado de uma escola e de um modelo de educação pertencente a um mundo muito diferente. E é esse ponto que quero abordar. Da mesma forma como muitas pessoas (educadores, pais e autores) resistem à revisão de obras literárias – feita com respeito e profissionalismo, ressalto elas se opõem à atualização da forma como educamos nossas crianças e da própria escola, que também tem sofrido o peso do tempo. Se nós, pais, já não somos os mesmos… imagine os nossos filhos! Precisamos, assim como no exemplo das obras mencionadas, atualizar o modelo de ensino. Como especialista em educação e empreendedor da Geekie, tenho rodado o mundo, palestrando sobre o tema com um olhar muito voltado para a escola brasileira e as referências educacionais no exterior. Na edição de 2018 do Fórum Econômico Mundial para América Latina, cujo tema transversal foi a Quarta Revolução Industrial – um momento no qual o mundo está interconectado, mas a organização geopolítica e os problemas globais não correspondem à forma como estamos organizados – a minha colaboração foi levar o olhar da tecnologia e da inovação, dentro de um contexto educacional real e prático. Quando se pensa que a escola atua com o desafio de preparar o aluno para as competências do século XXI – mas, que ainda perpetua um modelo de trabalho baseado nas habilidades necessárias na época da revolução industrial – percebe-se que a proposta educacional adotada por grande parte das escolas está distante de um modelo de trabalho e de vida em sociedade com pensamento crítico, autonomia e visão de futuro. No cerne do desafio de preparar os jovens para o mercado de trabalho do futuro está a necessidade de questionar um sistema educacional no qual as habilidades que ele se propõe a desenvolver – basicamente, memorização e preparação para um exame vestibular – não têm nada a ver com as habilidades e competências que o mercado de trabalho exige (criatividade, pensamento crítico, trabalho em equipe e comunicação). Ou seja, o oposto do que o modelo tradicional executa ao manter o aluno sentado em uma carteira, em postura passiva, copiando textos e estudando sozinho para a prova. Essa falta de sintonia entre a escola e educar para o futuro está custando caro. Nossos filhos estão abandonando a sala de aula. No Brasil, de acordo com a PNAD, 50% dos jovens brasileiros não conseguem concluir o Ensino Médio até os 19 anos. A necessidade de trabalhar, que pode vir à mente como principal fator da evasão escolar, não é o primeiro motivo: 40% dos jovens que abandonaram os estudos apontam o desinteresse – de acordo com a pesquisa da Fundação Getúlio Vargas. O problema do acesso universal à uma educação de qualidade não é só social, mas também é uma questão de competitividade! Se o país não garantir que todas as pessoas que passam pelo sistema educacional tenham capacidade de desenvolver plenamente o próprio potencial, corremos o risco de deixar vários “Stephen Hawking” pelo caminho. Se o Brasil quiser ser um país competitivo, precisamos que todas as crianças tenham uma educação de qualidade. Temos que mudar, no mínimo, o Ensino Médio para aproximar essas duas pontas, de modo que o dia a dia desse aluno na escola seja conectado com o que ele vai ser demandado no mercado de trabalho. O primeiro passo da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é direcionar o ensino para habilidades e competências, mas para que isso aconteça há um longo caminho. E esse caminho tem muito a ver com levar inovação, tecnologia, empreendedorismo e noção de cooperação para dentro da sala de aula. Hoje, a escola muitas vezes ainda está distante de ser um ambiente de colaboração. O estudante por vezes está sozinho, o pai tem que contratar professor particular para esclarecer dúvidas adicionais. O professor também está em uma jornada solitária, dando aulas em várias escolas e sem tempo de estabelecer vínculos. O coordenador vive uma rotina sobrecarregada e de cobranças. Ou seja, cada um está imerso no próprio cotidiano, sendo que a escola deveria ser por essência um lugar de colaboração e de corresponsabilidade em prol de um objetivo maior: o desenvolvimento das pessoas. Um lugar de encontro para alunos, pais, professores e coordenadores; todos unidos em uma comunidade escolar de fato. Óbvio que esse desafio de criar uma “nova edição crítica da escola” passa por toda a comunidade escolar. Mas, acredito que passa necessariamente pela coragem das famílias de exigir a transformação da escola; passa por não ter medo da mudança e de lançar um olhar crítico para esse modelo escolar que tem origem no século XII. E não se trata de jogar tudo fora, como se nada fosse bom ou passível de edição. Estou falando de, como nas novas edições de Monteiro Lobato, reconhecer a genialidade de conteúdos e transformar o que não dialoga com o mundo atual. Essa é uma decisão urgente, pessoal e intransferível. As famílias também precisam assumir o protagonismo na transformação da escola. Claudio Sassaki é mestre em Educação pela Stanford University e cofundador da Geekie, empresa referência em educação com apoio de inovação no Brasil e no mundo. Leave a Reply Cancel ReplyYour email address will not be published.CommentName* Email* Website